São Paulo, domingo, 28 de agosto de 1994
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De solução a problema

DE SOLUÇÃO A PROBLEMA

"Similia similibus curantur", os semelhantes curam-se pelos semelhantes. Essa antiga máxima resume a sabedoria humana que conseguiu transformar, por exemplo, o veneno da cobra em soro antiofídico. Pois no Brasil pretendeu-se aplicar a máxima também ao campo da economia. Criou-se aqui a correção monetária que, como o soro, emula a inflação com o propósito de neutralizar seus efeitos. Contra a inflação que passa, uma inflação que fica, pretensamente sem incomodar.
Basta entretanto um olhar retrospectivo para jogar por terra justamente essa suposição de neutralidade, essa utopia de uma inflação inofensiva. O caderno Brasil 95 que a Folha publica hoje faz a revisão dos últimos 20 anos de inflação e constata que, na prática, o veneno da inflação é mortal.
A identificação dos produtos e serviços cujos preços mais subiram evidencia as vítimas desse mal: mensalidades escolares, livros didáticos, educação, serviços médicos encareceram nos últimos 20 anos mais de 130% reais. Ou seja, acima da inflação média que por si só já foi escandalosamente elevada.
A reportagem da Folha constatou também que em vários setores industriais brasileiros os índices de concentração ultrapassam o nível que nos EUA se considera como "altamente preocupante". No caso de artigos de limpeza, por exemplo, 90% do mercado está em mãos de duas empresas. Esses produtos, nos últimos 20 anos, também conseguiram valorizar-se acima da inflação. Não espanta, portanto, que muitos atribuam ao poder de algumas empresas de dominar seus mercados uma responsabilidade na dificuldade de se reduzirem preços, mesmo quando ocorrem quedas nos níveis de consumo.
Ocorre entretanto que seria leviano atribuir a esse ou àquele setor a responsabilidade pela inflação. Pois a própria correção monetária, ao propiciar uma ilusão de proteção dos contratos, faz da inflação um fenômeno generalizado e que se autoperpetua por definição.
Foi através do Estado que se pretendeu administrar de modo aparentemente técnico e neutro a instituição da correção monetária. Mas como, se afinal a própria máquina pública sempre precisou da inflação para maquiar desequilíbrios no Orçamento? Na prática, o governo tem ao longo dos anos desenvolvido cepas ainda mais variadas e resistentes de vírus inflacionário. Impostos são criados e aumentados, a dívida pública transforma-se numa armadilha de curtíssimo prazo, os mecanismos de controle de estatais transformam-se em instrumentos meramente decorativos.
É difícil superestimar o vigor com que as velhas estruturas resistem à necessidade de mudança. O Plano Real é mais um golpe contra a correção monetária. Mas o desafio não está em suportar uma realidade de desequilíbrios, vícios e ineficiência sem a anestesia da correção monetária. O que se necessita é mudar essa realidade para que a anestesia seja ela mesma dispensável.
Esse é o sentido da insistência na necessidade de reformas urgentes, especialmente da Constituição, que alterem inclusive o sistema tributário. Por isso pede-se maior abertura comercial ou privatização.
O Plano Real avança, mas é evidente que sua consolidação depende do muito que ainda não se conseguiu fazer. O equilíbrio orçamentário conquistado através do Fundo Social de Emergência é temporário. A abertura comercial alcançada até aqui é fruto de um cronograma correto, mas, para que a estabilidade de preços se consolide e o câmbio não se valorize ainda mais, é preciso estimular as importações. A inflação foi trazida a níveis bastante reduzidos, mas ainda existem mecanismos de indexação.
A inflação perpetuada através da correção de preços generalizada criou uma sociedade onde afinal não há "culpados" pelo problema. Coloca-se então uma questão central: se não se consegue transformar o veneno em remédio e se o remédio se transforma em vício, ninguém poderá indicar e administrar a terapia autêntica, capaz de quebrar essa dependência, sem o apoio firme da própria sociedade.

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