São Paulo, domingo, 28 de agosto de 1994
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O guarda que comeu a empada

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO – Uma das instituições mais sagradas no Rio é a da empada que matou o guarda. O produto existe em outras paragens, mas foi aqui que teve origem e incontestável eficácia. Aí pelos anos 60, Nelson Rodrigues e eu pretendíamos escrever uma biografia da empada que matou o guarda. Nelson chegou a publicar alguma coisa numa coletânea infantil. Brigamos por causa da palavra "precoce". Eu a queria, o título seria "Autobiografia Precoce da Empada que Matou o Guarda". Nelson repeliu o precoce, depois eu viajei e o projeto foi para o brejo.
A história é conhecida pelo relato oral: aí pelas três horas da tarde, um guarda daqueles antigos, que pouco ou nada tinham a fazer numa cidade então cordial e pacífica, foi tomar um café no botequim mais próximo.
Enquanto o português o servia, o representante da lei e da ordem emplacou o olhar numa empada que, entre iguarias de igual aspecto, se oferecia aos clientes mal protegida por um guardanapo sujo e cheio de moscas. Como o suborno é também instituição nacional, o português ofereceu-a. Rezam as crônicas que ele não chegou a comê-la toda. Deu dois passos, segundo alguns caiu no próprio chão do botequim, segundo outros, na calçada. Local do histórico evento: o Largo do Machado, ali perto do antigo Cinema Politeama.
As mortes de Sócrates, César, Cristo, Lincoln, Napoleão, Kennedy e Tancredo Neves mereceram contraditórias versões. A do guarda do Largo do Machado é mais complexa, permanece intocada em seu mistério. Falou-se e ainda se fala na empada que o matou mas não dele, guarda, testemunha e vítima.
Volta e meia alguns amigos me perguntam por que deixei de escrever livros. Posso garantir que assunto não falta: tenho esse guarda literalmente guardado para uma eventualidade. O diabo é que hoje tudo se faz com patrocínios, as editoras enfrentam dificuldades, o papel está caríssimo e é preciso um dinheiro firme antes do pontapé inicial. Pois taí: ofereço-me. Só não aceito patrocínio de padarias, panificadoras, confeitarias, botequins e estabelecimentos afins. Exijo absoluta liberdade para criar.

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