São Paulo, domingo, 28 de agosto de 1994
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Engana trouxa

Caio Túlio Costa

CAIO TÚLIO COSTA
"NÃO ACREDITO MUITO NAS ESTATÍSTICAS SOBRE O BRASIL."

"Não acho que existam os 32 milhões de miseráveis."
Estas duas afirmações são do candidato a presidente que anda na ponta das pesquisas, Fernando Henrique Cardoso.
A primeira delas pode ser até cientificamente comprovável, se um sueco vier até aqui pesquisar o grau de confiabilidade das estatísticas oficiais.
Com a segunda afirmativa, o candidato (sociólogo, professor e político sedimentado nas durezas da vida de exilado) subestima sua própria inteligência e desrespeita seus eventuais eleitores.
Campanha política é sempre campanha. Elimina a possibilidade do equilíbrio com a moral (conforme Visconti, o cineasta) e continuará sempre sendo vista de forma negativa se não se transformar radicalmente o modo de fazê-la e de dar declarações.
Quem quer ser levado a sério deve se poupar de tamanho despautério. Não importa se são 32 os milhões de miseráveis, ou mais ou menos. Importa se existe um, apenas um miserável, e todos nós somos responsáveis por isso.
Qualquer ser humano que chegue a qualquer cidade do Brasil comprovará empiricamente a miséria. Miséria humana, estrutural, física e espiritual. Fernando Henrique está em campanha e visitou grandes e pequenas cidades. Nós que moramos em São Paulo vemos a miséria não apenas nas periferias, mas em qualquer esquina, em qualquer viaduto, em qualquer porta de hospital, em qualquer fila da previdência –isto para falar apenas da miséria estrutural.
Discursos eleitoreiros são feitos para tentar desativar o discurso de outros candidatos, e a denúncia da miserabilidade é patente de Lulas, de Brizolas. Procura-se inverter o eixo da discussão sobre os miseráveis como se, repetindo que os miseráveis são menos do que 32 milhões, resolvêssemos nossos problemas de consciência, nós os que temos acesso aos meios de comunicação e sabemos ler.
Um candidato a presidente que não se ocupar da miséria está fadado a dar continuidade a tudo de inútil que se fez até agora neste país. Ninguém, novamente, em sã consciência, acredita que um presidente vá resolver o problema dos despossuídos. Trata-se de tarefa para todo um povo, de uma mudança radical de mentalidade. Mas não dá para engolir afirmações supostamente técnicas e deste naipe e ficar quieto.
O próprio Fernando Henrique está certo em dizer que, sem dados confiáveis, o governo não pode trabalhar. Não mesmo. Idem para a percepção do candidato.
Sem um mínimo de sentimento em relação à nossa miserabilidade também não se pode trabalhar, nem confiar nos governantes –ou nos que postulam o governo.
O Plano Real, urdido e levado a cabo por Fernando Henrique e sua equipe até aqui, vem mostrando que pode vir a ser útil se se fizer tudo aquilo que o próprio candidato considera necessário para dar certo: mudanças na Constituição, reforma no sistema tributário e previdenciário, ataque aos monopólios e tudo o mais que vá significar sangue, suor e lágrimas (como Churchill prometeu aos ingleses).
Conseguiu-se até aqui, às custas de pirotecnia cambial e significativa perda de poder aquisitivo da classe média, brecar a inflação. Para os miseráveis, a moeda (literalmente) passou a ter algum valor e eles conseguem comprar um pouquinho mais do que compravam, mas não uma vida digna. A "qualidade" da miséria brasileira, no entanto, permanece indecente para uma terra que pretende ser nação. Se são 32 milhões, realmente, ninguém sabe. O que importa é que são miseráveis e a miséria aumenta inapelavelmente.
E vai aumentar ainda mais se fingirmos que a estatística, seja bem ou mal feita, pode nos livrar também da má consciência.

Ilustração: "Retirantes", 1944, Candido Portinari

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