São Paulo, segunda-feira, 29 de agosto de 1994
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"O Anel" termina e deixa paradoxos

LUÍS ANTÔNIO GIRON
ENVIADO ESPECIAL A BAYREUTH

O Festival de Bayreuth terminou ontem com a sexta e última récita da ópera "Tristão e Isolda", de Wagner, dirigida por Daniel Barenboim e Heiner Mller. Mas o espetáculo que interessava terminou anteontem, às 22h50 (17h50 em Brasília). O ciclo "O Anel dos Nibelungos" se encerrou com "O Crepúsculo dos Deuses". Foi a terceira e última apresentação da nova tetralogia. A montagem fica em cartaz até 1998. Em 1999 o Festspielhaus fecha para só reabrir no milênio que vem.
As vaias viraram rotina neste "Anel" e prosseguiram até o último segundo de aplauso. Mesmo assim, o maestro James Levine, o encenador Alfred Kirchner e a estilista e cenógrafa Rosalie, responsáveis pela nova montagem, saíram consagrados. Foi também a consagração de uma abordagem apolítica, algo incomum nos últimos anos em Bayreuth.
A dramatização pós-moderna de Kirchner e Rosalie não agradou tanto quanto a música. Para muitos, foram quatro noites –20 horas– de cólera.
"O Crepúsculo dos Deuses" teve dois heróis fracos. Wolfgang Schmidt, como Siegfried, parecia personagem de pastelão, correndo de um lado para outro. Deborah Polaski, como Brnnhilde, só tem porte e potência. Não convence no papel e possui técnica vocal que não emociona. Com esses dois mocinhos, o vilão Hagen (o baixo Erik Halfvarson) encontrou terreno fértil para brilhar. Quando matou Siegfried pelas costas, recebeu aprovação unânime da platéia.
Em "O Ouro do Reno" o barítono inglês John Tomlinson (Wotan) dominou a cena com voz de trovão e ciência teatral. O tenor Siegfried Jerusalem, como Loge, mostrou a desenvoltura de sempre. É uma das estrelas de Bayreuth.
O setor teratológico foi contemplado com bons intérpretes, além de figurinos cômicos. O baixo alemão Ekkehard Wlaschiha, como o anão Alberich, Halfvarson, como o gigante Fafner (com máscara afro), e as três garotas do Reno em uniforme de aeróbica (a norte-americana Sara Fryer como Wellgunde e as britânicas Jane Turner como Flosshilde e Joyce Guyer como Woglinde) cantaram com competência.
Tomlinson dividiu a cena com o barítono Hans Sotin (Hundin), veterano no Festspielhaus (trabalha lá desde 1972). A soprano Tina Kiberg chamou atenção como Sieglinde, com voz segura. A contralto Hanna Schwarz projetou a voz em todo canto do teatro. As oito valquírias provaram que os coros de Bayreuth são insuperáveis.
Em "Siegfried", o papel principal ficou para Schmidt, um tenor limitado, com técnica insegura e atuação fraca. Wlaschiha mais uma vez espantou como Alberich.
A orquestra do festival, regida por James Levine, proporcionou a mais lenta versão desde o início dos anos 60. Levine é wagneriano ortodoxo, na escola de Mck e Knnapertsbusch. Somente ele teria autoridade para restaurar as velhas poções wagnerianas de lentidão depois de três décadas de abordagens "latinas" (rápidas, quentes).
Em 1962, por exemplo, a versão mozartiana de Karl Bõhm levou 13 horas e meia. A de Pierre Boulez, em 1976, não ultrapassou 15 horas. O público de 1994 estranhou a lentidão de Levine, mas terminou gostando. Wagner tocado como Wagner é uma raridade há muito tempo.
A controvérsia foi menos musical do que teatral. A montagem provocou apupos arrebatados. Assim como Levine recuperou a cadência vagarosa da partitura, a dupla de encenadores restaurou a fantasia em detrimento da moda das leituras políticas.
Com figurinos ecléticos e cenografia geométrica, criaram ambientação leve e colorida, que às vezes tendeu para desfile de moda.
Kirchner despolitizou o palco, retomou o famoso círculo de Wieland Wagner (que funciona como um picadeiro básico para o transcorrer das ações) e fez o público engolir o mito sem alegorias diretas. Ainda que a gestualidade tenha sido estereotipada e muitas vezes fora de contexto dramatúrgico, Kirchner teve a virtude de restabelecer a metafísica do texto. Conseguiu encenar os deuses como seres frágeis, afetados por delírios e congelamentos da alma.
Bayreuth testemunhou dois paradoxos este ano: um maestro judeu restaurou o wagnerismo radical e um diretor marxista desmarxizou o "Anel", pintado de vermelho desde os anos 70.
O jornalista Luís Antônio Giron viaja à Alemanha a convite da gravadora Polygram.

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