São Paulo, segunda-feira, 29 de agosto de 1994
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Poesia de Michelangelo martela o corpo

BERNARDO CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL

No texto de Giulio Carlo Argan incluído como posfácio na edição brasileira dos poemas de Michelangelo, publicados agora pela Imago, o crítico italiano diz que o artista renascentista "foi sem dúvida um dos grandes criadores do Maneirismo, porém foi ainda mais maneirista na poesia do que na pintura ou escultura".
Michelangelo Buonarroti (1475- 1564), responsável pelo teto da Capela Sistina e pela "Pietà", entre outras grandes obras do Renascimento italiano, escrevia suas rimas (mais de 300, entre sonetos, epitáfios, madrigais e fragmentos) em cartas que recebia, ao lado de esboços, no verso de desenhos etc. A seleção feita pela Imago inclui 45 desses textos, em italiano, acompanhados cada um de uma tradução auxiliar (de sentido) e de um pequeno comentário.
Na primeira edição, de 1623, sob o efeito da Contra-Reforma, as referências homossexuais foram alteradas ou banidas do texto pelo sobrinho do artista. As edições posteriores, a partir da de 1897, recuperaram as passagens que tinham sido censuradas.
Desejo homossexual
As análises psicológicas de obras literárias e artísticas costumam ser as mais pobres e reducionistas. No caso dos poemas de Michelangelo, porém, o desejo homossexual expresso com frequência pelo autor é o que desencadeia o conflito na base da obra –e o que garante a originalidade e a modernidade do texto.
Michelangelo foi influenciado desde a juventude pelas idéias do neoplatonismo e sua obra atesta essa vontade de libertar o espírito do corpo (da matéria, da pedra) para que possa alcançar o divino e a luz. O Maneirismo nasce justamente desse confronto.
"(...) A extrema intensidade da experiência existencial e a autenticidade do choque irrefreável entre erotismo abrasador e desesperada tensão religiosa transparecem com maior vivacidade na multifacetada cristalografia do verso", escreve Argan no posfácio.
Conflito divino
Mas as contradições do maneirismo de Michelangelo não se reduzem ao conflito tradicional entre corpo e espírito no dilema de uma ascese divina; é o próprio conflito que permite a revelação do divino; é nas contradições e no confronto radicalizado entre opostos que ele aparece.
"A experiência dos sentidos era o obstáculo a ser superado e quanto mais intensa fosse, mais se elevava o espírito: igualmente o amor sensual era pecaminoso, mas sem ele não teria existido o amor de Deus. (...) O próprio gigantismo das figuras de Michelangelo era, por contradição, a superação de sua fisicalidade", diz Argan.
A contradição é alimentada no próprio texto; aparece numa ambiguidade irrestrita que contamina os versos e no uso de palavras cujo sentido opõe umas às outras. "Vivo em pecado, morrendo para mim vivo", "Vivo da minha morte" etc.
Princípio masoquista
O dualismo maneirista de Michelangelo na realidade expõe um princípio masoquista aliando desejo e morte, o martírio abrindo o caminho para o divino. "Se vivo mais de quem me queima e dana,/ quanto mais lenha ou vento o fogo acende,/ tanto mais o que me mata me defende/ e mais me contento onde mais me fere."
Se o neoplatonismo o levava a pensar sobre o ato de esculpir a pedra como uma revelação do espírito, libertação da matéria em direção à luz, nos poemas é o próprio "eu" que passa a ser a pedra a sofrer os golpes do martelo para se libertar.
"Se o meu rude martelo às duras pedras/ ora esta ora aquela forma humana plasma" ou "(...) Contigo no coração, valho mais que eu mesmo,/ como pedra que depois de talhada,/ vale mais que pedra bruta" ou "Caro me é o sono e mais ser de pedra".
Dentro dessa dualidade masoquista, o "eu" do poema se submete aos golpes do outro (do amor, do desejo), como uma pedra a ser esculpida, e na dor dessa paixão acredita, como a escultura saindo da pedra, alcançar a luz, libertar o espírito.
Aniquilamento de si
A radicalização desse conflito –o sofrimento do corpo como caminho para a libertação do espírito– faz com que, no final da vida, Michelangelo leve o sentido dos golpes de martelo até o aniquilamento de si. É ao ser aniquilado, na morte, que o "eu" do poema se funde finalmente no amor do outro.
"Minha vontade só existe em teu querer", "E assim morte e vida,/ contrárias, juntas num instante/ dentro da alma sinto (...) pois mais me maltrata que bem me traz", "Um homem numa mulher, antes um deus/ por sua boca fala/ e eu, porque a escutei/ não mais senhor de mim mesmo serei" ou "(...) Não mais dividido, mas inteiramente seu me tornar".
O "eu" maneirista dos poemas de Michelangelo só existe no conflito da paixão do outro, que se confunde com a paixão de Cristo, e só pode viver na morte. É o escultor transformando o próprio corpo em escultura, como uma obra divina.

Livro: Poemas
Autor: Michelangelo
Apresentação e notas: Andrea Lombardi
Tradução: Nilson Moulin
Páginas: 146
Preço: R$ 9
Onde: nas livrarias

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