São Paulo, quarta-feira, 31 de agosto de 1994
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Catalepsia

ANTONIO DELFIM NETTO

O grande Aurélio descreve "catalepsia" como "estado em que se observa uma rigidez cérea dos músculos, de modo que o paciente permanece na posição em que é colocado". Confesso que o Aurélio e eu não sabemos o que é "cérea". Mas o que interessa é saber que em estado cataléptico, "o paciente permanece na posição em que é colocado".
O Plano real, para funcionar, tem que manter o Brasil em estado cataléptico! Ele tem um objetivo extremamente modesto (e talvez aqui resida o seu sucesso): eliminar a inflação inercial. Nada mais lhe pode ser pedido, sob pena de devolver ao paciente um dinamismo que o destruirá. Mesmo com essa simplicidade de objetivos e multiplicidade de instrumentos ele vai, a pouco e pouco, acumulando tensões.
A estimativa do IPC-r para agosto não é certamente um desastre, mas é preocupante porque revela a cavalar aceleração da inflação na segunda quinzena de junho, com sérias consequências sobre o salário real. Não deixa de ser curioso o argumento do governo segundo o qual se retirarmos do índice as causas da inflação, não há inflação!
A possível violação da meta da oferta monetária é relativamente pouco importante do ponto de vista operacional, mas certamente produzirá dúvidas psicológicas nos agentes menos sofisticados.
O aumento da TR para proteger os depósitos de poupança terá efeito negativo em outros setores da economia. Aumentará o "descasamento" do ativo e passivo do setor imobiliário. Aumentará a insegurança do setor agrícola, já assustado com a política cambial. Sem uma definição clara de preços mínimos, sem alguma forma de garantia de funcionamento efetivo da equivalência preço-produto, os riscos de empréstimos a 11% de juros mais TR (manipulada sem cerimônia pelos burocratas) são apreciáveis. Mas nada de trágico por enquanto.
A política cambial que manipula o dólar nominal pela variação da taxa de juros real interna vai acabar produzindo efeitos reais sobre as exportações e importações. A tarifa média deve andar hoje por volta de 12%. Com a queda do câmbio nominal em 10% e os efeitos discriminadores perversos da Cofins contra os produtos nacionais, a economia brasileira deve ter se tornado a mais aberta do mundo, protegida apenas pela distância... Isso serve para controlar preços e assegurar a catalepsia de alguns setores produtivos. Também nada de importante por enquanto.
O problema é que a lenta e segura ampliação da demanda interna de outros setores, cuidadosamente escondida do ministro Ricupero, pode eliminar o torpor cataléptico. É isso que hoje excita Brasília, que ameaça com o controle de crédito ao consumidor!
O problema das mensalidades escolares é terrível. A insensata medida provisória está desorganizando o ensino privado e vai conduzi-lo à insolvência. E a saúde continua na UTI!
O problema da lei do inquilinato continua insolúvel, causando estragos pela redução da oferta de moradias. Afinal, quem foi responsável pelo aumento dos aluguéis, o novo bode expiatório do IPC-r, se não o próprio governo?
Nenhuma dessas tensões é importante isoladamente e por enquanto. Mas o que acontecerá quando todas elas se agravarem simultaneamente? Não seria bom enfrentá-las antes de uma coalizão capaz de abalar a âncora salarial que sustenta o plano?

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