São Paulo, quarta-feira, 31 de agosto de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O senhor da hora

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO – Agosto costuma ser mês cruel. Está no fim e, olhando em conjunto, já tivemos agostos piores. Não queria que acabasse sem que escrevesse alguma coisa sobre Getúlio Vargas. Cada vez mais me convenço de que foi o maior vulto de nossa história. Em 1966 me encomendaram um livro sobre ele. Comecei as pesquisas com uma frase de Novalis na cabeça: "Quando avistares um gigante, olhai a posição do sol e verás a sombra de um anão".
Bem, no meio do trabalho verifiquei que fazia o itinerário às avessas: procurava um anão e, aos poucos, fui tragado pela sombra do gigante.
Ele, sozinho, representou a nossa revolução burguesa. E toda revolução comete crimes. Vargas os cometeu, submisso às circunstâncias que dele fizeram um ditador por imposição de militares anticomunistas. Haveria um ditador naquela ocasião; se não fosse Vargas, seria Góis Monteiro, Dutra ou qualquer outro hierarca da época.
Acredito que tenha sido o único personagem de nossa história com dimensão clássica. Ele ficaria bem no teatro grego. E em Shakespeare também, se atentarmos à dicotomia de sua personalidade humana e política. Ele teve dentro de si um César e um Brutus. Foi o Getúlio e foi o Vargas.
O ato final de sua vida foi lógico, anunciado desde 1930: ele sempre costeou a eternidade. Nos dias dramáticos de agosto de 1954, mais do que nunca mergulhou em si mesmo. Tinha o peito de César. E a mão de Brutus. Libertador e liberticida, ele conhecia as pedras de seu destino. Esfinge que não se decifrou nem tolerou que alguém o fizesse. Deixou que a corda esticasse e foi o senhor de sua hora. Uniu César e Brutus no mesmo gesto.
Ao longo da história, nenhum homem que tentou integrar uma classe marginal à sociedade escapou da liturgia do sangue. Algoz ou vítima. No caso dele: algoz e vítima ao mesmo tempo. Assombrosamente lúcido, deu sereno passo em direção à eternidade.

Texto Anterior: Altíssimo nível
Próximo Texto: Catalepsia
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.