São Paulo, quinta-feira, 1 de setembro de 1994
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Conta no armazém da esquina

CARLA RODRIGUES

Qualidade de vida. Esta é a palavra chave do sucesso do real. Ter dinheiro no bolso, não precisar ir ao banco, nem telefonar todos os dias para fazer e desfazer aplicações, usar o cartão de crédito quando bem entender, sempre pelo mesmo preço, planejar o orçamento do próximo mês, enfim, o que devia ser regra e que, no Brasil, sempre foi exceção. Categorias profissionais tiveram alguma perda na conversão dos salários pela média, já compensadas pela estabilização nos preços.
É verdade que 5% de inflação em agosto é uma taxa alta. Mas só se assusta quem já se esqueceu dos 45%. Na vida das pessoas comuns, no dia-a-dia no supermercado, 5% não é exatamente uma inflação preocupante.
Pode tirar o sono da equipe econômica –e deve, porque antes do real entrar em vigor as previsões dos técnicos sobre uma possível inflação de 5% eram alarmistas e catastróficas.
Mas o que se vê nas ruas –e nos índices do candidato Fernando Henrique Cardoso– é só satisfação. Ninguém quer saber se o plano corre o risco de naufragar a partir de 16 de novembro. O que a grande maioria da população quer, especialmente a de baixa renda, sempre à margem do mercado consumidor, é poder fazer conta no armazém da esquina, para citar um trecho dito com grande beleza por Fernanda Montenegro em "Dona Doida".
Li na Folha da última segunda-feira (29/08/94) artigo do correspondente do "Financial Times" no Brasil, jornalista Angus Foster. Impressionado com a alma brasileira e com a enorme capacidade de ter esperança e ser otimista que este povo mais uma vez demonstra, Foster aponta importantes problemas que o futuro presidente, mesmo que seja ele o autor do real, terá de enfrentar. Os problemas existem e não são poucos.
Mas há, como Foster tão bem diagnosticou, uma forte comoção em torno do sucesso do real. É, é bom ter uma moeda estável no bolso até mesmo para a classe média, aquela que tinha acesso a todos os sofisticados mecanismos de proteção que a indexação tinha produzido.
É bom fazer crediário, ainda que os juros estejam altos (aliás, esta história de conter o consumo parece mais estímulo para comprar porque quanto mais o governo ameaça mudar as regras, mais o consumidor corre para comprar logo antes que mude).
É um alívio, acima de tudo, descansar da ciranda financeira em que estávamos todos enfiados. É um descanso mais do que merecido.
Foster diz em seu artigo que correspondentes estrangeiros são pagos para se manterem alheios a emoção. Jornalistas, de modo geral, o são. Pagos para desconfiar, sempre (nem sempre bem pagos). Mas jornalistas brasileiros também não estão acostumados a viver numa economia estável. E têm exibido –salvo as exceções de costume– a mesma comoção do consumidor em geral.
Sim, ganhamos todos em qualidade de vida. Mas por mais penoso que seja, nós, jornalista, não podemos usufruí-la como qualquer pessoa comum. Temos, isso sim, o dever de desconfiar ainda mais. Porque sempre é preciso desconfiar pelos que não podem ver ainda.

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