São Paulo, quinta-feira, 1 de setembro de 1994
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Vírus da arte contamina o centro de SP

BERNARDO CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL

Você nunca pisou nesses lugares. No centro do quarto andar vazio de um prédio velho da avenida São João, um homem vai atirar um coração de boi dentro de um enorme recipiente de vidro transparente, cheio de leite e suspenso por uma estrutura de metal.
Durante 30 dias os dois elementos (leite e coração) vão permanecer em interação química, dentro do vidro, diante dos olhos do público. O nome da obra é "A Matéria tem Dois Corações". O nome do artista é Waltércio Caldas.
A alguns metros dali, na fachada de um dos prédios públicos mais importantes da cidade, vão ser instalados três gigantescos periscópios, permitindo aos passantes ver o que se passa no último andar desativado do edifício, onde um cineasta estará distribuindo estranhos óculos que abrem e fecham, como diafragmas de uma câmera, aos visitantes.
O inventor dos periscópios chama-se Guto Lacaz; o inventor dos óculos, Andrea Tonacci.
A partir do dia 24, às 18h, o projeto Arte Cidade 2 invade três espaços esquecidos de prédios do centro de São Paulo com instalações, esculturas, vídeos etc., estendendo suas atividades pelo vale do Anhangabaú e até a rua Augusta, onde o artista plástico Arthur Lescher pretende fazer uma intervenção, durante uma noite, acendendo e apagando as luzes da rua ininterruptamente com intervalos de 7 minutos.
Ao contrário do Arte Cidade 1, que ocupou em março o antigo Matadouro Municipal, na Vila Mariana, a nova edição do evento –que tem como tema "A Cidade e seus Fluxos"– quer se alastrar por cantos esquecidos da cidade, se disseminar pelas ruas e prédios como um vírus.
"No Arte Cidade 1 havia um lugar. Aqui não. Queremos trabalhar com a idéia da cidade se materializando e se desfazendo", diz Nelson Brissac, curador do projeto organizado pela Secretaria de Cultura do Estado, com patrocínio da Eletropaulo e da Cinemídia, e apoio do Banco do Brasil e do SP Centro.
A maior parte dos 22 artistas que participam do evento incorporam a idéia de imaterialidade em suas obras, a concepção da cidade como luz e imagem. Grande parte das propostas usam vídeo, cinema, som no lugar da matéria. Daí o predomínio de instalações.
O fotógrafo Rubens Mano, por exemplo, concebeu uma espécie de fotografia imaterial urbana, um "Detetor de Ausências": vai colocar dois antigos holofotes do exército apontados horizontalmente no Viaduto do Chá, transformando os passantes em silhuetas negras.
Além da imaterialidade, a simulação é uma das principais características do evento. Regina Silveira projetou no chão do quinto andar da Eletropaulo as janelas do edifício projetado por Ramos de Azevedo, criando a ilusão vertiginosa de um abismo dentro do prédio.
Anna Muylaert vai simular nos três prédios do evento e no Vale do Anhangabaú as várias etapas do suicídio de um bancário (com a cena da morte, o velório e anúncios fúnebres em jornais).
Outros, como os arquitetos Abílio Guerra e Marco do Valle, usam a instalação como pretexto para uma reflexão mais explícita sobre essa percepção contemporânea da cidade não mais como um acúmulo de blocos de pedra, mas uma interseção de fluxos.
Nada mais pertinente do que tratar, nesse novo cenário urbano, a arte como um vírus, uma forma de vida primordial capaz de contaminar os fluxos em ruínas e reanimar os espaços mortos, desativados e esquecidos.

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