São Paulo, sábado, 3 de setembro de 1994
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Burocracia da morte

VALÉRIA BARACAT

No último dia 25 à noite começou o drama de uma família que só terminaria quase uma semana depois. Um acidente caseiro matou o garoto Murilo Arcanjo Novaes, 6 anos, no apartamento da família, no Ipiranga (zona sul de São Paulo).
Os pais o levaram ao hospital Leão 13, no bairro. Murilo sobreviveu com aparelhos até o dia 29. Neste dia, os médicos constataram morte cerebral. Os pais resolveram doar os órgãos que não tinham sido lesados. A partir desse instante, o drama ganhou atos de insensatez.
Não havia policiais de plantão no Leão 13 e por isso não foi feito o Boletim de Ocorrência, exigido pelo IML para a autópsia em caso de morte violenta. O pai do menino, Pedro, e uma assistente do hospital Dante Pazzanese, onde se constatou a morte, foram ao 36º DP.
Lá, receberam a informação de que o 36º DP não fazia parte da jurisdição do local do acidente. Teriam de ir até a delegacia do Ipiranga, o 17º DP. Depois de exaustivas conversas, o delegado do 36º DP fez o BO. Ele se prontificou a enviar uma cópia para o 17º DP. Achando que tudo estava resolvido, a família não imaginava o que ainda teria de suportar.
Policiais do 36º DP se encarregaram de pedir ao IML que retirasse o corpo. Três horas depois, o carro ainda não havia chegado. O IML alega que não recebeu nenhuma solicitação. A delegacia, porém, confirma o pedido. O fato é que, uma hora depois –e, portanto, quatro após o previsto–, o carro do IML retirou o corpo de Murilo.
Para percorrer o curto trajeto entre o Dante Pazzanese e o IML, o carro levou três horas. O corpo de Murilo chegou ao IML quase à meia-noite do dia 30. Quem pensa que a tortura acabou está enganado. Se não fosse um procurador do Estado amigo da família, o corpo seria transferido para a unidade de Santo Amaro, bairro a que pertence o Dante Pazzanese. O IML de Santo Amaro só abre às 6h. Ou seja, o calvário da família duraria mais seis horas. A ação do procurador, com a colaboração da Polícia Civil, evitou o terrível desgaste.
Como resultado dessa peregrinação desumana pelos labirintos da burocracia da morte, o corpo de Murilo só pôde ser velado 30 horas depois do falecimento. Ele, que com o transplante de seus órgãos ajudou outras pessoas a continuar vivendo, não teve a menor consideração das autoridades.
É inadmissível uma família, já com muita dor, passar por tudo isso. É urgente o fim da burocracia da morte. Essa é uma boa missão para os líderes da luta pelos direitos humanos no país incluírem na sua lista de afazeres –ainda que essa lista já esteja repleta de tarefas.

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