São Paulo, domingo, 4 de setembro de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O real em debate

EDWARD J. AMADEO
O sucesso do Plano Real dependerá de uma política de rendas negociada
Senti-me desconfortável com os conceitos empregados a meu respeito no artigo "Os equívocos de Amadeo", dos senhores José Roberto e Maria Cristina Mendonça de Barros (Folha, 10/08/94). Só posso atribuir tamanha intolerância no fato de referir-me a eles pelo primeiro nome em meu artigo "Os acertos de Aloizio" (Folha, 07/08/94).
Assim procedi por simetria: em seu artigo original, referem-se os senhores Mendonça de Barros ao senhor Aloizio Mercadante por Aloizio.
Dois outros debates de que participei por meio da Folha –com os professores Francisco de Oliveira e José Pastore– foram regidos pela ética e tolerância. Fiel à minha conduta, recuso-me à escalada de agressões. Bandeira branca.
O Plano Real deve ser debatido. A estabilização é uma prioridade e isso não está em discussão. Estão em discussão os efeitos distributivos associados ao real e a sua filosofia.
Salários
A não ser em casos negociados, um plano de estabilização não pode almejar o crescimento dos salários. Mas no Brasil, onde o salário mínimo caiu 25% desde o pré-Cruzado, não se pode admitir um plano que imponha perdas ao salário básico.
Em julho, lançado o plano Real, o governo anunciou que os trabalhadores de baixa renda teriam ganhos imediatos. Estou convencido de que o poder de compra do salário mínimo caiu com o Plano Real.
Com base nos dados da cesta básica do Procon/Dieese, constata-se uma perda líquida de 4% entre a média de novembro/93 a fevereiro/94 e agosto, utilizando-se a estimativa de ganho de 12% devido à diminuição do imposto inflacionário. Com estimativa de 8%, a perda líquida seria de 8%.
Para a maioria dos assalariados de empresas que seguem a política salarial tampouco há dúvidas de que houve perdas. A menos que o trabalhador tenha data-base em agosto, a perda medida pelo IPC-r em relação à média de novembro/93 a fevereiro/94 será de 10,6% até agosto. A partir daí acumulam-se até a data-base essas perdas e, se houver, novas inflações.
A Pesquisa Mensal de Emprego do IBGE –certamente a mais abrangente do gênero– mostra que, para os assalariados com carteira assinada, o salário em maio foi 4,6% menor que a média de novembro/93 a fevereiro/94.
No caso da Fiesp, os dados sobre o salário "per capita" apontam crescimento de 11,8%. Mas, devido ao aumento da jornada de trabalho, o crescimento do salário-horário –que é o relevante– até junho não passa de 6%.
Entretanto –um ponto fundamental–, dado que a mudança da relação salário/preço ocorreu em fins de junho e que os índices de preços captam com retardo a aceleração da inflação, só os dados de julho e agosto dirão o que de fato ocorreu.
De definitivo temos apenas as conclusões sobre o mínimo e sobre o salário dos trabalhadores de empresas que seguem a política salarial. Nesses casos, houve perdas.
Juros e ajuste fiscal
Me equivoquei ao dizer que o Tesouro gastou 30% da receita tributária com pagamento de juros no primeiro semestre, ao desconsiderar o rendimento dos títulos do Tesouro do Banco Central (BC).
Mas meus argumentos sobrevivem, já que os dados relevantes referem-se às contas consolidadas do Tesouro e do BC, retratadas na tabela. De acordo com dados da Macrométrica, os gastos com compra de divisas e pagamento de juros sobre a dívida interna cresceram 181% entre os primeiros semestres de 1993 e 1994, passando de US$ 8,5 bilhões para US$ 23,9 bilhões.
Essa é a principal razão para que, a despeito do superávit primário, o déficit operacional (que inclui juros e despesas com divisas) chegasse a US$ 23,5 bilhões, contra US$ 4,4 bilhões em 93. Entre os dois primeiros semestres, o déficit operacional cresceu 434%.
Meu argumento é o de que a política deliberada de juros elevados compromete o ajuste fiscal porque a acumulação de reservas e o próprio pagamento de juros dão origem a déficits operacionais e aumentam a dívida pública. Sobre a dívida incidem e incidirão juros no futuro, comprometendo o ajuste fiscal nos próximos anos.
Há efeitos distributivos instantâneos e intertemporiais associados à política de juros altos. O pagamento de juros implica transferência de renda do governo para os detentores da dívida pública, que estão no topo da pirâmide distributiva.
Além disso, se acreditamos que a dívida um dia será paga, isso demandará a geração de superávits primários no futuro. Superávits que exigem mais impostos ou redução de gastos tradicionais do governo.
Filosofia do plano
Estou ciente de que, para a maioria dos economistas, os benefícios da estabilização justificam seus efeitos redistributivos. Este é um juízo íntimo que cabe a cada um.
Meu primeiro ponto sobre a filosofia do Plano Real refere-se à alocação do dinheiro público. Pergunto, para dar um exemplo, se a diferença entre reservas cambiais de US$ 41 bilhões ou US$ 35 bilhões é decisiva para a sustentação do câmbio e do plano.
Faço essa pergunta porque não sei que critérios são usados para decidir entre gastar US$ 6 bilhões com compra de divisas ou com o lançamento de um programa social de emergência.
Sabe-se que a situação social é grave, mas a decisão de restringir gastos sociais é draconiana. Faz-se muito alarde sobre o governo cumprir a sua parte, não gastar um tostão além das receitas, do BC não financiar o Tesouro.
Mas quem estabelece os limites ou os critérios de gastos com juros e compra de divisas do BC? Esta é uma decisão política –tomada independentemente pelo BC.
Para alguns, o nível de reservas de US$ 41 bilhões é essencial. Mas é legítimo que, para outros, os gastos com um programa social de emergência tivessem utilidade social –"latu sensu", aí incluindo a probabilidade de sucesso do plano– maior que a compra de US$ 6 bilhões em divisas.
O segundo ponto diz respeito à utilização da taxa de juros como principal instrumento de política econômica. A apreciação do câmbio, o crescimento da dívida e a redução dos estoques das empresas –todos fatores que comprometem o futuro do plano– resultam dos juros altos. Esta foi a estratégia da equipe desde o final de 1993. Há outra forma de fazer uma política de estabilização?
Sustento que sim. Em agosto de 1993, quando se discutia a política salarial que impunha um redutor de 10% sobre a inflação, o ministro Fernando Henrique Cardoso, com o prestígio que tem junto ao setor empresarial, poderia ter proposto que os preços também tivessem um redutor de 10%.
Outras opções de políticas de rendas existiam e existem: negociações setoriais, como fez o ministro Cavallo na Argentina; uma negociação ampla com centrais sindicais e associações patronais, como se fez em Israel; ou uma combinação das duas.
São opções que reduzem substancialmente o peso dos juros como instrumento de estabilização. É o uso das instituições e da negociação para facilitar o trabalho do mercado –conceito caro à social-democracia européia. Não se deve supor que o caminho trilhado pelo real era o único possível. É apenas o caminho pelo qual optou a equipe econômica.
Dado que assim optou, e estamos todos no mesmo barco, que tudo de bom aconteça daqui em diante. Mas estou seguro que o sucesso do Plano Real dependerá de uma política de rendas negociada.
Além disso, face à deterioração do quadro distributivo, recomendaria que o próximo presidente lançasse um programa social de emergência, a fim de resgatar a dignidade vital dos brasileiros pobres.
EDWARD J. AMADEO, 38, doutor em Economia pela Universidade de Harvard (EUA), é professor do Departamento de Economia da PUC-RJ (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro) e autor de "Keyne's Principle of Effective Demand" (1989) e "Keynes's Third Alternative" (1991), Edvard Elgar Publishing Co (Inglaterra).

Texto Anterior: Muamba na praça; O de sempre; Nova fábrica; Risco semestral; Carteira gorda; Outras pesquisas; De véspera; Para depois; Em aceleração; Relações à parte
Próximo Texto: PIS e Cofins; Dependentes; Licença-casamento; Pagamento de férias; Guarda-noturno; Transporte de passageiros; Crédito do ICMS
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.