São Paulo, domingo, 4 de setembro de 1994
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Eleitorado elege promessa de estabilidade

EDUARDO GIANNETTI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Democracia e mercado são sistemas de registro e processamento de preferências. Ao votar no candidato X ou comprar o produto Z, o indivíduo expressa sua preferência e decide, juntamente com os demais eleitores e consumidores, o destino de X e Z. A diferença básica entre os dois sistemas está no método de agregação das escolhas individuais.
Se 51% dos eleitores votarem em X para presidente, então todo o eleitorado terá que aceitá-lo na Presidência do país durante o seu mandato, independentemente de ter ou não votado nele. Aos 49% que, digamos, preferiram votar em Y, só resta agora enfiar a viola no saco, aderir ou fazer oposição. Mesmo que X não termine o seu mandato, só se elege um presidente (e um vice) de cada vez.
Com o sistema de mercado é diferente. Se 90% dos leitores desejam, por exemplo, comprar o livro de Paulo Coelho, paciência. Mas, pelo menos, isso não obriga todos os demais consumidores a também pagar e levar para casa "O Alquimista". Os inconformados com a preferência da maioria por Z podem ainda perfeitamente escolher, entre milhares de outros títulos, como desejam gastar o seu tempo e dinheiro.
É verdade que tanto o voto do eleitor quanto o gasto do leitor resultam de um ato de escolha individual. Cada um se informa como pode sobre as alternativas existentes e decide por si o que vai fazer. A diferença essencial está na agregação das preferências individuais. É que no processo político –ao contrário do econômico– a decisão final é coletiva. Uma vez tomada, vale para todos –ninguém escapa.
A sociedade brasileira está prestes a tomar decisões coletivas de enormes consequências para o seu futuro. Faltando um mês para o primeiro turno das eleições, as preferências que vêm sendo registradas no processo eleitoral são claras e inequívocas. O eleitorado brasileiro não espera dos políticos o céu sobre a terra. O que se exige dos futuros governantes são condições mínimas para uma convivência civilizada –honestidade e paz para trabalhar.
A primeira novidade entre as preferências do eleitorado é o grau de exigência quanto à integridade e retidão moral dos postulantes a cargos eletivos. O impeachment de Collor e a CPI do Orçamento foram traumas que machucaram a opinião pública, mas deixaram sequelas positivas. Se a punição dos culpados ficou aquém das expectativas, já a reação dos eleitores vem sendo salutar.
O fato é que o eleitorado brasileiro tornou-se muito mais atento e exigente na cobrança de padrões éticos dos candidatos. Os impeachments preventivos dos vices Bisol e Palmeira e do candidato à Presidência do PL mostram que diminuiu o grau de tolerância do nosso sistema político com a hipocrisia e práticas escusas. O fraquíssimo desempenho de Quércia nas pesquisas faz parte do mesmo quadro. É um sinal claro de que o eleitorado não quer mais saber de candidatos sobre os quais pairam graves suspeitas.
Mas a principal surpresa do processo eleitoral até o momento foi –e continua sendo– o impacto fulminante do Plano Real sobre o quadro sucessório. Se alguém ainda tinha dúvidas a respeito, agora não tem mais. A mensagem não poderia ser mais direta e está sendo captada por todas as lideranças políticas do país. A democracia existe para isso.
A população brasileira está absolutamente ávida por estabilidade. O eleitorado atribui prioridade máxima ao combate à inflação e está registrando sua preferência pela moeda estável como o grande desafio nacional para o próximo governo. Mais do que qualquer partido ou candidato, o que está sendo eleito é a promessa de estabilidade do Plano Real.
O que está acontecendo no Brasil repete, de certa forma, o padrão observado em outros países latino-americanos. A vitória folgada de Zedillo no México, apesar da recessão e da revolta de Chiapas, reflete a opção do eleitorado mexicano pela continuidade das reformas e pela estabilidade dos últimos anos. O populismo redistributivista de Cárdenas foi rebaixado para o terceiro lugar nas urnas, com 17% dos votos. Mesmo na província de Chiapas –o reduto dos zapatistas– a disputa foi vencida pelo candidato a governador do PRI.
Outro exemplo notável foi a eleição de Sanchez Lozada na Bolívia. Como ministro do Planejamento, Lozada foi o responsável pela estabilização boliviana em meados dos anos 80 –um processo inevitavelmente recessivo e que exigiu, entre outras medidas dolorosas, a dispensa de 28.000 funcionários da empresa estatal de estanho num país de sete milhões de habitantes. Sua eleição para a Presidência da Bolívia, no ano passado, foi o reconhecimento de que a vitória sobre a inflação valeu todo o sacrifício necessário para livrar-se dela.
O mesmo raciocínio vale para o que está acontecendo com Menem na Argentina e Fujimori no Peru. As pesquisas de opinião mostram que nenhum dos dois teria a menor dificuldade para se reeleger à Presidência, graças ao formidável capital eleitoral conquistado por conta da estabilização. Enquanto Menem conseguiu alterar a Constituição para viabilizar sua reeleição, Fujimori prepara-se para voltar ao poder, como Vargas, "nos braços do povo".
O grande consenso antiinflacionário está determinando os rumos da política na América Latina. O sistema democrático registra a forte preferência popular por moeda estável e os líderes que respondem a essa demanda colhem nas urnas a aprovação maciça do eleitorado. Sem estabilidade monetária, não há futuro. A descoberta não resulta de pressão externa ou golpe ideológico –ela é fruto da experiência amarga com décadas de descontrole e populismo.
O caso brasileiro, nesse cenário, é peculiar e preocupante. Uma coisa é votar na estabilidade vivida, amargada e conquistada, como vem ocorrendo no México, Bolívia, Argentina e Peru. Outra, muito diferente, é votar na estabilidade prometida e anunciada –temporariamente engendrada–, como está acontecendo no Brasil.
O Plano Real tem condições de nos levar até a posse do próximo presidente, mas não mais do que isso. É difícil imaginar, a essa altura, quais seriam as consequências de uma repetição do engodo e da frustração vividos com o Cruzado. O meu palpite é que o jogo é alto. Se os beneficiários eleitorais do Plano Real não forem capazes de honrar a promessa que os está elegendo, a decepção com o sistema democrático será profunda e a sobrevivência da nossa democracia poderá ficar seriamente ameaçada.

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