São Paulo, domingo, 4 de setembro de 1994
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Trakl transforma grito em geometria

"De Profundis" traz uma amostra da poesia de Georg Trakl

MODESTO CARONE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em edição bilíngue, a Iluminuras lança 28 poemas de Georg Trakl (1887-1914) selecionados e traduzidos para o português por Claudia Cavalcanti. É uma iniciativa que faz sentido, pois o poeta, pouco conhecido do público no Brasil, é o maior do expressionismo alemão e um dos grandes da modernidade.
Sua obra é pequena e a parte dela que resistiu ao desgaste do tempo e pertence à poesia universal chega a cem poemas. Mas são todos de uma extraordinária beleza e originalidade e no plano do que se convencionou chamar de lírica essencial emendam na obra de monstros sagrados como Hoelderlin e Novalis, com os quais Trakl se identifica pessoalmente através de homenagens e citações. Num século que marginalizou a poesia como uma espécie de quantidade negligenciável da cultura, é uma realização artística impressionante –mais ainda quando se lembra que o poeta morreu aos 27 anos.
Os críticos e leitores atentos são quase unânimes em perceber que a passagem do aprendizado para a plenitude na produção de Trakl é assinalada pelo poema "Salmo" (Psalm), escrito em versos livres em 1912. Georg tem 25 anos, acaba de soltar a língua sob a influência da tradução alemã de Rimbaud por Karl Klammer e tem pela frente apenas dois anos para compor, em meio a uma vida fora dos trilhos (leia texto à pág. 6-9), as obras-primas que, segundo os especialistas, atendem às peculiaridades de uma poesia moderna que não encontrou execução mais importante em língua alemã.
Até então ele podia ser considerado um artesão hábil, autor de poemas trabalhosamente metrificados e acomodados à visão de mundo do impressionismo vienense, onde predominam os motivos da efemeridade, da solidão, do amor saudoso, da tristeza e da morte, em cenários batidos de crepúsculos nos parques vazios, castelos abandonados e lagos melancólicos. Em 1912 (ano da virada de Kafka, com "O Veredicto" e "A Metamorfose"), a dicção trakliana passa a ser outra, densa e precisa, e os versos ritmados mas sem rima armam uma trama refinada em que os temas incidem na mesma tecla pessimista, muitas vezes matizadas pelo toque da salvação. É o caso, por exemplo, de "Aos Emudecidos" (An die Verstummten):
"Oh, o desvario da grande cidade quando à noite/Árvores aleijadas enrijecem junto ao muro preto./Da máscara de prata espreita o espírito do mal./A luz oprime a noite pétrea com látego magnético./Puta que nos tremores gelados pare uma criança morta./A ira de Deus açoita com fúria a testa do possesso,/Peste purpúrea, fome que estoura dos olhos verdes./Oh, o riso horrendo do ouro./Mas na cova escura sangra em silêncio a humanidade mais muda,/Forja com duros metais a cabeça redentora." (*)
Não é difícil reconhecer aqui o traço expressionista que transforma o grito em geometria. Sem patrocinar uma narrativa, quase todo verso oferece uma visão nova, um gesto novo, fechado em si mesmo, que se agrega sem mediações ao anterior. O estilo paratático, de adição, cria um mosaico de fragmentos capaz de projetar, no conjunto, uma imagem complexa, na qual a grande cidade, marcada pela força da grana, produz o momento da superação ao forjar com os seus duros metais a cabeça que redime os que não têm voz.
Embora nem sempre esperançosa, a lírica de Trakl –retrabalhando praticamente o mesmo material– lida com as oposições mais radicais. Uma descrição temática dos seus poemas destaca, de um lado, as constantes da "morte" e da "destruição" (às quais adere, como consequência e agravamento, a "decomposição") e de outro a "redenção". Esses termos polares são encarregados de balizar o regime de complementaridade em que se articular o movimento mais profundo da obra, ou se se quiser, o seu "drama".
Isso vale de "Salmo" até o último poema escrito pelo poeta, "Grodek", nome do sangrento campo de batalha da Primeira Guerra Mundial, onde o escritor-tenente sofreu um "breakdown" pouco antes de morrer em Cracóvia. Trava-se nele um confronto entre o verso médio que diz "Todos os caminhos desembocam em negra decomposição" e a linha final, em que os "netos não-nascidos" emergem dos recortes apocalípticos da guerra.
Mas o afunilamento dos temas traklianos pode induzir a falsa impressão de que é simples ler Trakl, uma vez que seus versos tendem a mobilizar umas poucas noções veiculadas por determinadas palavras-chaves. Sem prejuízo de afirmar que os poemas maduros realmente manipulam um número restrito de "cifras", ou que o código formado entre elas pode ser submetido a análises mais ou menos precisas, é um dado de realidade que a sua poesia tem um cerne ambíguo e muitas vezes impenetrável.
Ao abordar na "Teoria Estética" a questão do hermetismo e as condições históricas de sua inteligibilidade, Adorno cita Trakl como caso exemplar. Rilke, que o leu pela primeira vez quando o poeta estava a caminho da frente oriental em 1914, anotou, no início de 1915, que a experiência do poeta se manifesta através de reflexos, ocupando inteiramente o espaço, que se torna, mesmo para quem está próximo, indevassável como o espaço de um espelho. A carta em que ele faz esta observação de artista literário que sabe do que fala foi traduzida e incluída no apêndice do livro, o que é uma contribuição para o leitor.
"A ininteligibilidade que se censura nas obras de arte herméticas é o reconhecimento do caráter enigmático de 'toda' arte", afirma Adorno. Os comentadores de Trakl concordam que o enigma de sua poesia reside no aspecto "autônomo" de imagens vincadas pelo uso original e "arbitrário" do adjetivo de cor e no modo peculiar como elas se relacionam. Não surpreende que um deles diga que o lírico de Salzburg olha com as palavras e que seu olho é eloquente, ou que vários outros comparem a economia interna do poema trakliano a um mosaico, a uma colagem ou a uma montagem, em suma: a uma junção premeditada de fragmentos.
Com efeito, quem lê estes textos tem a sensação de que as imagens individuais se apresentam soltas, com o ar de partículas reunidas sem necessidade, ou seja: como elementos cuja ligação num todo estivesse sendo assegurada por nexos que passaram de causais a locais. Veja-se esta peça de excepcional beleza plástica e atmosfera que é "Paisagem" (Landschaft):
"Anoitecer de setembro; tristes soam os chamados sombrios dos pastores/Pela aldeia no crepúsculo; o fogo chuvisca na forja./Poderoso empina um cavalo preto; os cabelos de jacinto da criada/Buscam ávidos o fervor de suas ventas cor de púrpura./Congela em silêncio à beira do bosque o grito da cerva/E as flores amarelas do outono/Vergam mudas sobre o semblante azul do lago./Arde uma árvore em flama rubra; os morcegos esvoaçam com caras escuras." (*)
Foi diante desse desafio que os estudiosos esquadrinharam a obra inteira, desde o único livro publicado em vida pelo poeta, "Poemas" (Gedichte, 1913), até o espólio de inéditos, fragmentos, variantes e esparsos divulgados na revista "Der Brenner", do amigo e protetor Ludwig von Ficker. O resultado a que chegaram indica, em resumo, que Trakl trabalha com um léxico limitado (substantivos + adjetivos) mas adaptável a múltiplas variações através de construções sintáticas altamente padronizadas.
Além disso o repertório das "fatias de realidade" e das "figuras" testadas pacientemente pelo artista (anoitecer, floresta, colina, cidade, forasteiro, solitário etc.) é acionado numa frequência tal que as transforma em verdadeiras peças móveis da composição. Acrescem os empréstimos recorrentes a Bíblia, de certos poetas afins como Hoelderlin e Novalis e principalmente da tradução de Rimbaud por Klammer. Tudo somado, mais a decisão temperamental de "ter de se corrigir continuamente para dar à verdade o que é da verdade" (ser poeta é também uma questão de caráter), a impressão que fica é a de que a poema trakliano assume as características de um jogo de armar ou então de um caleidoscópio que a cada novo balanço produz constelações inéditas com as mesmas unidades.
Continua à pág. 6-9

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