São Paulo, domingo, 4 de setembro de 1994
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A dança como sobrevivência

ANA FRANCISCA PONZIO

Bill T. Jones, soropositivo, fala de arte e política
Especial para Folha
Foram necessários mais de 40 anos desde Cunningham para a dança moderna norte-americana resgatar a emoção como fio condutor. Com a atual geração de coreógrafos, uma nova fase se anuncia. Seu mais contundente representante é Bill T. Jones, 42, negro, homossexual declarado, soropositivo para o vírus da Aids e dono de um extraordinário talento.
Merce Conningham fez da dança um fenômeno do gesto. Suas concepções foram assimiladas por todas as gerações seguintes da dança moderna. Na trilha de suas inovações surgiram nos anos 60 os pós-modernos, que defendiam uma abordagem minimalista.
Recusando a profusão gestual e a trama dramática, o movimento pós-modernista foi desencadeado por nomes como Trisha Brown, Lucinda Childs, Meredith Monk e Steve Paxton, que criou uma técnica denominada "contact improvisation", em que os bailarinos desenvolvem os movimentos a partir do apoio mútuo. Como na dança de Cunningham, a expressão pós-moderna se concentra na beleza formal da coreografia.
Desde a morte de seu amante e parceiro artístico Arnie Zane em 1988, Bill T. Jones vem ampliando sua militância social –outra postura rara entre profissionais da dança. Nas ruas de Nova York, seu retrato ilustra cartazes de campanhas sobre Aids. Carismático e brilhante, Jones proclama:
"Sou o décimo filho de uma família negra de 12 irmãos. Em 1971, tomei a decisão política mais importante de minha vida: resolvi dançar com Arnie Zane, meu amante branco e judeu. Começamos a dançar quando a moda era o minimalismo, que reduz todos os elementos do teatro, distanciando-o da emoção e da narrativa. Arnie e eu falávamos sobre o que é ser negro e homossexual. Contávamos histórias muito pessoais numa época em que todos procuravam transcender o pessoal."
O mais recente desafio de Jones é o espetáculo "Still Here", cuja estréia mundial será no próximo dia 14, na Bienal da Dança de Lyon, França. Interpretada pelo grupo que fundou em 1982, Bill T. Jones/Arnie Zane Dance Company, "Still Here" é uma coreografia de longa duração, criada a partir de um documentário que Jones vem realizando com doentes terminais, vítimas não só de Aids.
Nos últimos meses, ele se reuniu com comunidades de doentes, gravou e filmou tudo o que faziam e diziam e transformou esse material em danças e canções. "É um desafio fazer isso na América, terra dos talk-shows e da trivialização dos problemas", diz.
Outra diferença de Jones com relação aos coreógrafos que o precederam é que, hoje, os profissionais da dança enfrentam a pior crise econômica já instalada nos meios artísticos dos Estados Unidos. Mas, para Jones surgiu uma opção. Aclamado na Europa, ele aceitou em março passado o convite para ser o novo coreógrafo-residente do Ballet da Ópera de Lyon, uma das mais respeitadas companhias francesas.

Folha - O que representa trabalhar como coreógrafo de uma companhia européia?
Bill T. Jones - É muito bom poder trabalhar em uma cidade próspera e sossegada como Lyon, num teatro prestigiado e maravilhoso como o Teatro da Ópera de Lyon e ainda estar em contato com bailarinos tão elegantes e inteligentes.
Está muito difícil trabalhar em Nova York. Enfrenta-se muitas pressões. Em Lyon todos estão me acolhendo muito bem e isso é muito animador. A atmosfera e a cultura dessa cidade são relaxantes para mim e têm estimulado meu lado mais alegre e espiritual.
Folha - Você vai se dividir entre Lyon e Nova York?
Jones - Devo ficar dois meses e meio por ano em Lyon. O resto estarei em turnê com meu grupo, que continua sediado em Nova York.
Folha - Quais são seus planos para o Ballet da Ópera de Lyon?
Jones - Assinei um contrato de dois anos e a proposta é realizar duas grandes criações e acrescentar algumas das peças que já criei ao repertório do Ballet de Lyon.
Para a abertura da temporada deste ano, criei uma peça curta, "I want to cross over", mas para o próximo ano devo realizar uma coreografia longa, que ocupará todo o programa de uma noite.
Este ano, itepassa a pertencer também ao repertório do Ballet de Lyon o dueto "Soon" (1989), que coreografei para meu grupo e que pode ser dançado por casais de homem e mulher, só homens ou só mulheres.
Se eu chegar até o próximo ano será uma honra comemorar o centésimo aniversário da invenção do cinema, que foi inventado aqui em Lyon, por Lumière, que nasceu na cidade. Vou compor uma peça em cima desse tema.
Folha - Como está a produção de "Still Here"?
Jones - Acabo de receber de Ken Frazelle, compositor negro da Carolina do Norte (EUA), esboços de canções que surgiram nos workshops de sobrevivência. Nos workshops estimulo os participantes a realizar movimentos comigo. Falamos sobre tudo, família, corpos, morte, infância.
As canções surgem do que as pessoas expressam. Por exemplo, uma participante me falou das três alternativas que tinha para seu câncer no seio: mutilar, envenenar através da quimioterapia ou queimar através da radioterapia. A partir disso, fizemos uma canção chamada "Slash, Poison, Burn" (Retalhar, Envenenar, Queimar).
"Still Here" terá duas partes. A primeira, chamada "Still", terá músicas de Frazelle. Para a segunda, "Here", as partituras estão sendo escritas por Vernon Reid, jovem compositor negro, de rock (do grupo Living Color).
Folha - "Still Here" não será muito deprimente?
Jones - Espero que não. Minha idéia é também realizar um bom entretenimento. Quero que "Still Here" atinja todas as pessoas, não só doentes.
Nos workshops descobri que as pessoas muito doentes têm senso de humor, sexualidade e esperança. Além do mais, "Still Here" é uma peça de dança e dança significa excitação, movimento, sensibilidade.
O tema de "Still Here" não é a morte e sim como nós vivemos. E para viver você tem que ter energia, tem que ser corajoso para enfrentar situações dolorosas. Ao mesmo tempo, temos que ter senso de humor e o desejo de viver, como se a vida fosse para sempre.
Além de prazer, quero que "Still Here", espero que seja um espetáculo que nos ajude a compreender como viver.
Folha - Você acha que a dança pode ser revolucionária?
Jones - Seria estúpido insistir em realizar uma dança revolucionária. Através do corpo, podemos demonstrar amor e paixão de uma forma muito direta e honesta. Isto é o que procuro, o gesto capaz de atingir a emoção do público através do encantamento do olhar.
"Still Here" não tem um significado óbvio, mas a emoção que transmite é real. É uma peça que estimula o desejo de viver, embora fale de um assunto que as pessoas temem e tentam escapar.
Podemos fazer uma revolução com um balé? Não sei se isso é possível, mas acredito que posso colocar questões complexas para o público e estimulá-lo a reagir.
Folha - O que o processo criativo de "Still Here" vem trazendo para você?
Jones - Problemas (risadas). Na verdade, o grande problema é o questionamento de mim mesmo. Tenho que compreender o gesto, tenho que ouvir significados em forma de palavras e transferir tudo para canções e, a partir daí, criar movimentos que não devem imitar as canções, mas iluminar todas as minhas habilidades como poeta e coreógrafo.
É um desafio. Cada vez que termino um workshop de sobrevivência é como se eu tivesse realizado uma meditação. É como se eu tivesse encarado a verdade no que ela tem de mais profundo.
Após ouvir as experiências dessas pessoas, seus desabafos e revelações, saio com a sensação de que, aos 42 anos, continuo aprendendo.
Folha - Posso afirmar que você recusa o minimalismo da dança moderna?
Jones - Sim, de alguma forma você está certa. Eu não tive escolha. Meu espírito, minha maneira de ser não são reprimidos... Não sou um coreógrafo abstrato porque estou muito presente no mundo.
Tenho muita facilidade em transformar experiências pessoais em experiências universais. Isso vem de minha família, de minha cultura.
Ao utilizar música gospel para a coreografia que fiz para o Ballet da Ópera de Lyon, "I Want to Cross Over", descobri que estava lidando com coisas muito profundas, tanto no sentido intelectual quanto emocional. Estava lidando com o limbo, o estado de incerteza da vida, e eu percebi que nós existimos entre a vida e a morte e como nós negociamos a existência entre esses dois extremos.
Amo as formas, a movimentação dos bailarinos. Mas meu trabalho é sobre a revelação humana.
Não é arte pela arte, o que pode também ser muito belo. Para mim, arte é o que eu quero dizer e mostrar para as pessoas, por que as pessoas querem ver o que eu tenho para mostrar.
Folha - Você considera Trisha Brown uma coreógrafa formal?
Jones - Sim, ela é uma grande coreógrafa das formas, desafia definições. Seu vocabulário é extremamente pessoal e humano, está expresso nos músculos, no universo físico do corpo.
A obra de Trisha é muito poética.
Folha - Um artigo do "New York Times" descreve você como um cruzamento entre Trisha Brown e Ben Vereen (bailarino negro que dançava nos espetáculos de Bob Fosse).
Jones - (Risadas) Acho que a comparação com Vereen se relaciona à maneira como costumo me apresentar... à excentricidade de meus movimentos, a sensualidade, o domínio de cena...
Na verdade, não entendo a comparação por inteiro, mencionando o cruzamento entre um showman, Vereen, e uma experimentalista, Trisha... Trisha é mportante para mim porque me proporciona a compreensão do movimento através do espaço.
Folha - Você concorda que a atual geração da dança moderna americana é mais emocional?
Jones - Sim, é verdade. Acho que a geração anterior à nossa explorou exaustivamente o mundo não-emocional. Eles estavam em busca de idéias formais e da mais pura representação da dança.
A dança poderia descartar a música, cenários, um tema central, bailarinos carismáticos ou até mesmo a técnica. Lucinda Childs, Laura Dean, Trisha Brown tinham sua própria lógica.
A geração seguinte acompanhou, viu o que eles fizeram, aprendeu com eles, mas estava envolvida com as preocupações econômicas e sociais de nossa época.
Essas preocupações vieram desde o início dos anos 80 e incluem confusão sobre o que é certo ou errado, drogas, incerteza quanto ao futuro, Aids. A geração anterior à nossa, os minimalistas, viveram muito a noção de alta cultura.
A geração à qual pertenço estava aberta para o cinema, a TV, o rock, a propaganda e foi aí que começou a encontrar seu caminho. Folha - Você tem formação em várias técnicas de dança. Entre tudo o que você estudou, o que é mais importante?
Jones - O trabalho com "contact improvisation" foi importante tecnicamente; ensina como um parceirotner pode segurar o outro de formas imprevisíveis.
Meu trabalho experimental se inspirou muito na dança jazz. A dança de Trisha Brown e outros experimentalistas dos anos 60 também foram importantes para mim, porque me ajudaram a descobrir como produzir movimentos.
Para mim, também foi importante ler histórias infantis e Proust, que me estimularam a memória. Folha - Qual a importância de Merce Cunningham para você?
Jones - Suas teorias sobre não-linearidade e seus procedimentos de acaso foram conceitualmente muito liberadoras e importantes para minha compreensão dos movimentos do corpo.
Folha - Quais são suas principais referências?
Jones - Martha Graham e Twyla Tharp são coreógrafas que me inspiram, e também Mary Wigman. O desejo do expressionismo alemão, de ser emocional e rude, voltando a dança para o chão, ao contrário da leveza do balé clássico, são coisas que me atraem.
Considero importante a mistura de teatro e dança de Meredith Monk. Como mencionei, os conceitos de Merce Cunningham também são importantes para mim.
Por outro lado, li muita poesia e literatura, mas minha arte favorita é a escultura. Coreografar é como esculpir pessoas.
Folha - Qual a origem do misticismo de suas danças?
Jones - Acho que vem de minha família, de minha mãe... Acredito muito na natureza mágica do mundo, acho que há um outro universo atrás do mundo aparente.
Meditação, tai chi chuan, estudei todas as coisas... Gosto de pensar que todas nossas atividades são espirituais, que tudo que vemos está envolvido por algo que não vemos. Não movemos apenas corpos no espaço, mas idéias e energia de nosso espaço interior, e imaginar isso é muito liberador, muito estimulante.
Folha - Como é o livro que você está escrevendo?
Jones -Este livro é como uma performance. Nele falo de memórias, de minha mãe, conto histórias, tudo muito espontâneo. Deve ser publicado em dezembro.
Folha - Você acredita que vive um momento pleno na carreira?
Jones - Desejo fazer muitas coisas e um dos problemas é que nunca sinto segurança financeira nos EUA. Tenho tido muitas oportunidades, mas é uma tortura para um artista ter sempre a sensação de que ainda falta alguma coisa.
Estou ganhando sabedoria, mas ainda queimo de desejo por aquilo que eu não tenho.
Folha - Você acha que sua produção artística reflete o fato de você ser soropositivo?
Jones - Você está se referindo ao sentido de emergência que minha dança transmite. É verdade, eu tenho esse sentido de emergência sobre a arte e a vida. Sinto uma vulnerabilidade, que eu quero mostrar. Sinto isso como um homem e como uma pessoa que vive agora, porque todos, acredito, se sentem vulneráveis hoje.
Quando eu era jovem, não que eu seja velho aos 42 anos, mas quando somos bem jovens pensamos que vamos viver para sempre e daí espera-se até mais tarde para fazer coisas, e quando nos damos conta, a vida está acabada.
Agora, eu me dou ao luxo de dizer não. Devo trabalhar agora, amar agora, me fazer ouvir agora. E acima de tudo, ser honesto. Eu gostaria de tornar o HIV uma coisa positiva e boa para mim.
Folha - A consciência da morte lhe trouxe uma percepção especial do mundo?
Jones - Acho que sim. Nunca senti que eu pertencesse a algum mundo. Mas, agora, depois de perder tantas pessoas eu sinto o quanto existe no mundo.
Estou mais compassivo e mais sério, mais humilde sobre o que posso ou não fazer, sobre minhas limitações. Acho que a consciência da morte também me torna mais aberto para arriscar, ousar...

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