São Paulo, domingo, 4 de setembro de 1994
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Poeta fez elogio da noite e do desejo de redenção

MODESTO CARONE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Os estudos mais recentes confirmam que desde a adolescência Georg Trakl consumia ópio, clorofórmio, veronal e cocaína. Explica-se: sua mãe Maria, uma protestante de Praga rejeitada pela comunidade católica de Salzburg, passava os dias fechada no quarto, às voltas com bonecas de louça; os filhos ficavam sob os cuidados de uma governanta. Há quem diga que durante muito tempo Maria foi viciada em narcóticos pesados.
Tobias, o pai, era um atacadista próspero, mas faliu quando Georg fazia o secundário. Os biógrafos o descrevem como um homem vulnerável; num poema do filho a figura recorrente do pai se transforma em ancião coberto de lepra.
A vida afetiva do poeta estava orientada para a irmã mais nova, Grete, que as fotografias mostram crispada e bela. Foi a única pessoa que ele amou: tornou-a sua amante e induziu-a ao uso de entorpecentes. Costumam identificá-la com a Forasteira e a Monja dos versos da última fase. Depois de estudar piano em Viena Grete casou-se em Berlim com um homem muito mais velho. Georg visitou-a uma só vez, quando ela teve que praticar aborto e quase morreu. Abandonada pelo marido, suicidou-se com um tiro dois anos depois da morte do irmão. O último poema, "Lamento", refere-se à "irmã de tempestuosa melancolia".
Sem recursos financeiros próprios, a partir dos 16 anos Georg foi obrigado a trabalhar como balconista e funcionário público para ganhar a vida. Mas não fez carreira: esquivo ao convívio e à rotina, ficou duas horas no melhor emprego que teve –um posto burocrático no Ministério do Trabalho. Seu único título na vida acadêmica foi o de farmacêutico; na época o cidadão austríaco podia estudar Farmácia sem ter concluído o colegial. É plausível porém que o poeta tenha feito a escolha pensando num acesso mais fácil às drogas. Quem lê seus poemas reconhece a experiência do drogado: o texto alimenta-se de um cortejo de imagens intensamente coloridas onde deslizam barcas e papoulas.
Isso não impede que a dicção da obra seja clara e segura, lembrando um mundo complementar à realidade histórica circundante. Pois esta vivia uma crise sem precedentes desde que a Monarquia do Danúbio perdera as bases de sua sustentação social. Há indícios de que Georg registrou essa ruptura na subjetividade desintegrada do psicótico. Seus melhores poemas –aqueles que dos 25 aos 27 anos escreveu e burilou nas costas de envelopes e guardanapos– falam em noite e decomposição, à qual não falta contudo o brilho tenaz da redenção. Sem dúvida isso remete a Hõlderlin, poeta com quem Georg tinha grande afinidade: em "Patmos" consta que onde há perigo cresce também a salvação.
Quando estourou a Primeira Guerra Mundial o poeta alistou-se como voluntário porque estava desempregado. Imediatamente enviado a uma frente de batalha, participou como oficial-farmacêutico da chacina de Grodek, na Galícia. Foi nela que se viu cuidando de uma centena de mutilados aos quais não podia socorrer por escassez de remédios. Ao seu redor, pendurados em árvores, balançavam os corpos de soldados enforcados por falta de bravura. Georg puxou o revólver e tentou matar-se, mas foi impedido pelos companheiros e despachado com escolta para o sanatório militar de Cracóvia. Diagnosticado como esquizofrênico (dementia praecox) ficou internado 15 dias numa cela acolchoada ao lado de um tenente delirante. Nesse lugar recebeu a visita do amigo e protetor Ludwig von Ficker, a quem entregou os originais dos dois últimos poemas, "Grodek" e "Lamento". Na noite de 3 de novembro de 1914, não se sabe como, tomou uma dose violenta de cocaína e sofreu uma parada cardíaca. O mais provável é que tenha se suicidado. Três dias depois chegava ao hospital, trazendo-lhe dinheiro, o lógico vienense Ludwig Wittgenstein, que admirava sua poesia embora afirmasse não entendê-la. As linhas finais de "Grodek" dizem o seguinte:
Uma dor poderosa nutre hoje a chama do espírito,/os netos não-nascidos.
Georg já estava enterrado no cemitério Rakowicz de Cracóvia quando saiu na Alemanha "Sebastian em Sonho", coletânea de suas primeiras obras-primas. Ao ler o livro em 1915 Rainer Maria Rilke perguntou: quem teria sido ele?

Extraído de "As Marcas do Real", de Modesto Carone, Paz e Terra, 1979

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