São Paulo, domingo, 4 de setembro de 1994
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O cinema à véspera da fúria nazista

Ensaio analisa os filmes políticos da República de Weimar

LÚCIA NAGIB
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Para o observador externo, a história do cinema alemão parece se resumir a dois períodos básicos: um certo "expressionismo", que dissemina suas influências entre fins dos anos 10 e meados dos 20; e o assim chamado Novo Cinema Alemão, que se desenvolveu entre os anos 60 e 70.
No longo espaço entre esses dois momentos, aparentemente teria reinado algo como um "vácuo artístico", em cujo centro estaria o cinema de propaganda nazista, precedido de uma leva de filmes de obscuras intenções sociais e sucedido pelo "Unterhaltungsfilme", os filmes de puro entretenimento do pós-guerra de Conrad Adenauer.
É fácil extrair esta visão mesmo dos livros "De Caligari a Hitler", de Siegfried Kracauer, e "A Tela Demoníaca", de Lotte Eisner, os dois pilares da história do cinema alemão. Em ambos, os filmes dos anos 10 e início dos 20 ocupam a maior parte do volume, restando a toda produção de meados dos anos 20 e início dos 30 apenas as páginas finais. O resultado é que os filmes imediatamente anteriores ao nazismo ficam espremidos numa longa lista de títulos, divididos por uma variedade de correntes que se emaranham em poucas linhas de análise.
É nesse terreno pantanoso que se insere o livro de Ilma Esperança, "O Cinema Operário na República de Weimar", não para resgatar filmes de supostas injustiças críticas, mas para promover um recorte destinado a transformar ao menos uma parcela da produção pré-nazista em objeto de estudo aprofundado.
A qualificação "cinema operário" deixa claro o critério de seleção dos filmes de acordo com seu conteúdo político. Com isso, ficou desde logo excluído o diálogo com Lotte Eisner, que não merece qualquer citação, a não ser na bibliografia final. De fato, imbuída do mesmo romantismo visionário que mais tarde animaria parte do Novo Cinema Alemão, Eisner preferia deixar-se arrastar pelos atrativos plásticos de um filme a entrar em debates políticos.
Já Kracauer, seu antípoda "realista", cobrava de forma tão intransigente a correção política dos filmes, que chegava a descartar por inteiro, em função de ambiguidades ideológicas, trabalhos de evidentes qualidades artísticas, como "Metrópolis", de Fritz Lang.
"O Cinema Operário na República de Weimar" se constrói então quase como uma complementação corretiva ao livro "De Caligari a Hitler" e outros textos de Kracauer, dos quais se extraem as molas iniciais de boa parte das idéias. A principal delas, a oposição entre "montagem" e "naturalismo", já havia sido tratada por Kracauer –embora de modo diverso. É esta oposição que conduz a autora ao apogeu do livro, constituído pela análise de "Kuhle Wampe ou A Quem Pertence o Mundo?", dirigido por Bertolt Brecht e pelo cineasta de origem búlgara Slatan Dudow.
A estes, nos quais a autora localiza a tendência "naturalista", se contrapunham filmes que, embora falando do cotidiano, optavam por métodos sofisticados de montagem, como "Berlim, Sinfonia de uma Metrópole"; despertavam, no entanto, objeções junto aos partidos de esquerda por sua "superficialidade" política. Em tal cenário, forma-se a pequena produtora Prometheus, ligada ao Partido Comunista, que se propunha como uma alternativa ao espírito conformista das grandes produções da UFA (Universal-Film Ag.).
A Prometheus conhece o ápice com dois filmes: "A Viagem de Mãe Krause para a Felicidade", dirigido por Phil Jutzi em 1929, e "Kuhle Wampe", de 1932, um dos primeiros filmes sonoros alemães. A longa análise do melodramático "Viagem de Mãe Krause" se justifica por constituir o filme o contraponto básico de "Kuhle Wampe" e das teorias de distanciamento de Brecht. Ambos os filmes desenvolvem a mesma temática: o drama do desemprego que resulta em suicídio numa família e o engajamento na luta política como única alternativa para os jovens.
"A Viagem de Mãe Krause", adotando a ênfase naturalista da encenação, busca convencer o espectador pelos sentimentos. Já "Kuhle Wampe" utiliza uma montagem de contrastes (análoga, por vezes, à "montagem de atrações" de Eisenstein), na qual descrições frias e irônicas se unem ao choque entre música (de Hans Eisler) e imagens. Apresenta, assim, um realidade complexa, que exige a participação do espectador.
Chega-se então ao desfecho perspicaz do livro, que configura essas duas tendências como espelho cinematográfico dos conflitos que dividiam as esquerdas na República de Weimar e acabaram favorecendo a ascensão de Hitler.
Reservando os comentários de conjuntura política para o fim, Ilma pôde dar livre curso a minuciosas análises estéticas, resguardando os filmes comentados de uma condenação (ou exaltação) ideológica a priori. Nisto reside a originalidade e o principal interesse de sua obra.

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