São Paulo, domingo, 4 de setembro de 1994
Texto Anterior | Índice

Corpos em movimento

ANA FRANCISCA PONZIO
ESPECIAL PARA A FOLHA, EM NOVA YORK

No início, o predomínio foi das mulheres. Depois de Isadora Duncan, a dança moderna norte-americana se construiu através de Loie Fuller, Ruth St. Denis, Doris Humphrey, Martha Graham.
Merce Cunningham, ex-solista do grupo de Graham, rompeu o matriarcado, entrando em seguida para o rol de inovadores que surgiu nos Estados Unidos na primeira metade do século. Último revolucionário vivo da dança moderna norte-americana, Cunnigham vem sendo homenageado em todo o mundo.
Em Londres, um tributo ao coreógrafo em 1992 reuniu intelectuais de todas as áreas, dos meios acadêmicos à televisão. Em 1995 haverá manifestação semelhante no Canadá.
Nascido a 16 de abril de 1919, em Centralia, Estado de Washington, Cunningham está em plena atividade. Seu grupo, fundado em 1953, Merce Cunningham Dance Company, estreou em maio deste ano sua mais recente coreografia: "Ocean". O espetáculo é inspirado em uma idéia de James Joyce e representa sua última parceria com o compositor John Cage (1912-1992), com quem manteve uma colaboração de mais de 50 anos. Cunningham sempre se cercou de importantes personalidades da arte contemporânea, embora considere a dança uma entidade independente, que não precisa do suporte da música, de um roteiro ou da cenografia.
Robert Rauschenberg, Jasper Johns, Frank Stella, Andy Warhol são alguns dos artistas que criaram cenários e figurinos para os espetáculos de Cunningham. Com todos os seus colaboradores, ele trabalhou em separado. E junto com seus bailarinos, só toma contato com o que foi desenvolvido pelo compositor ou artista plástico na estréia ou um dia antes.
Utilizando procedimentos do acaso, como jogo de dados ou a cara-ou-coroa de uma moeda lançada no ar, Cunningham determina qual sequência de movimentos segue-se à outra. Também inspirado no zen-budismo, ele aboliu a ação principal, criando num mesmo período de tempo e espaço uma multiplicidade de centros. Com isso, se desfez dos princípios convencionais que estruturam um espetáculo –como causa-e-efeito, conflito e resolução, construção e direção ao clímax.
Cunningham recusou a regra convencional dos coreógrafos, que costumam associar música aos movimentos do corpo. Para ele, a única relação entre dança e música é a simultaneidade. Símbolo de vanguarda na arte contemporânea, também antecipou a parceria entre dança e vídeo, transformando tal combinação numa linguagem artística e não num mero sistema de registrar passos.
Eterno inovador, ultimamente Cunningham vem coreografando por computador –através de um software chamado "Life Forms", desenvolvido especialmente para ele na Universidade do Canadá, o sistema permite ao coreógrafo criar possibilidades de movimentos por meio de uma figura tridimensional, que se move como um bailarino no monitor do vídeo.
Em seu estúdio situado em Greenwich Village, Nova York, Cunningham concedeu à Folha a entrevista que segue.

Folha – Qual a origem de "Ocean"?
Merce Cunningham - Houve um festival em Zurique, em junho de 1991, chamado "James Joyce/John Cage". A direção do festival recebeu a incumbência de trabalhar sobre John Cage e mim e, se possível, sobre trabalhos de James Joyce.
Foi quando John e eu tivemos a idéia de fazer esse espetáculo mais longo. No entanto, "Ocean" precisava de um espaço específico, circular, e nada foi encontrado em Zurique. Então, a peça foi abandonada ou, pelo menos, colocada de lado naquela época.
Mais tarde, quando a idéia foi retomada, os responsáveis pelo kunstenFESTIVALdesArts de Bruxelas pensaram em apresentá-la. Eles têm um local, o Cirque Royal, que serviria para a performance.
Em 18 de maio passado "Ocean" estreou no Cirque Royal, que é um espaço circular. A dança acontece no meio. O público senta em volta e, circundando o público, ficam os músicos.
São 112 músicos, que tocam música acústica, sem maestro. A outra parte da música é eletrônica e é uma composição de David Tudor. O efeito é o seguinte: o som da orquestra chega a esse espaço circular e o som eletrônico sai, com alto-falantes colocados num volume muito alto.
Originalmente, no palco, nós deveríamos ter John Cage. Eu tinha concebido a peça com uma hora e meia de duração, porque parecia ser um tempo ao qual as pessoas estão acostumadas. É mais ou menos a duração de uma sessão de cinema. Foi feita essa escolha e a peça seria contínua, sem intervalo.
Quando ficou decidido que isso poderia ser feito, cerca de um ano atrás, nós começamos a trabalhar. Tudor, que vive no campo, em Nova York, começou a compor a música eletrônica. Andrew Culver, que também vive fora de Nova York, criou a música orquestral. Ao mesmo tempo, eu comecei a trabalhar no estúdio, em Nova York.
Eventualmente, Andrew ia a Amsterdã, ensaiar a orquestra que nos acompanhou em Bruxelas. É uma orquestra de balé, que reúne não necessariamente estudantes, mas músicos jovens, que são patrocinados pelo governo holandês para acompanhar espetáculos de balés e grupos de dança.
Andrew foi antes de nossas performances. Eu e os bailarinos ouvimos a música pela primeira vez no dia da estréia. O ensaio com as roupas criadas para "Ocean" ocorreu um dia antes da estréia.
Folha – Como "Ocean" usa o texto de Joyce?
Cunningham – Não é uma música sobre um texto. John Cage e eu lembramos que Joyce tinha dito que o próximo trabalho que ele escreveria, se fosse vivo, seria sobre o oceano.
Quando os organizadores do festival de Zurique nos falaram de Joyce, nós pensamos em usar seu texto não escrito num sentido de pretexto.
Com isso, Cage imaginou um som que circundasse o espaço da performance, que não viesse apenas de um lugar, mas de vários, assim como o som do oceano.
Continua à pág. 6-5

Texto Anterior: Decreto cria corredores no Brasil
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.