São Paulo, domingo, 4 de setembro de 1994 |
Texto Anterior |
Próximo Texto |
Índice
Fernando 2º e o canto da sereia
WILSON CANO
No início dos 70 o fim da conversibilidade do dólar em ouro, nada mais era do que um ato de confissão dessa crise. O choque do petróleo, a inflação e o esgotamento do padrão de crescimento industrial europeu e japonês reduziram ainda mais a dinâmica de acumulação real, agora também nessas economias. Isto aumentou ainda mais o endividamento público no Primeiro Mundo, gerando crises fiscais estruturais na maioria desses países, culminando com o ato unilateral da política de juros altos (passam de 7% para 21,5% entre 79 e 81) dos EUA, em seguida acompanhado pelos demais países. Nesse transcurso dos 70, esses bancos e empresas ("bancos não bancos") estimulam o endividamento "fácil" aos países do Segundo e Terceiro Mundos, processo que culminou entre 79 e 82 na chamada "crise da dívida externa". Como se sabe, esse processo repete, em nossos países, o fenômeno da "fragilização financeira" dos Estados endividados, originando os famosos ajustes macroeconômicos. Por outro lado, os bancos e empresas bancadores desse processo promovem, nesse longo transcurso, o chamado processo de "financeirização", que consistiu nessa desmedida acumulação financiária e importantes alterações institucionais e operacionais no mercado financeiro internacional. Abarrotados por esse excedente financeiro fizeram renascer o ideário liberal do mercado, disseminando princípios neoliberais que, cinicamente, propõem: a) "privatização" de empresas públicas, alegando a necessidade de transferir recursos financeiros ao Estado e, ao mesmo tempo, dar-lhes maior "eficiência, que só o mercado possui"; b) "desregulamentação" dos movimentos internacionais do capital, dos monopólios públicos e a abertura comercial, facilitando os fluxos financeiros e permitindo o acesso do capital privado a importantes espaços de acumulação real, como energia, transportes e telecomunicações. Entretanto, como esses novos espaços não eram suficientes frente ao excedente financeiro, engendraram maior voracidade concorrencial através da "globalização" e da reestruturação produtiva, desencadeando: a) a realização de uma corrida sem precedentes das multinacionais –na maior parte entre elas mesmas–, gerando enormes transações (fusões, compras-vendas, joint-ventures e outras combinações). Como resultado, todas se livraram de suas "partes fracas", fortalecendo-se e reconcentrando o capital a níveis antes impensáveis; b) o início da implantação da Terceira Revolução Industrial utilizando os pacotes já disponíveis de ciência e tecnologia. Assim, realizaram um processo de acumulação real gigantesca, entre 1984 e 1991, e, não fora isto, a crise financeira poderia ter tido outro desfecho e, obviamente, o avanço técnico-científico que estamos assistindo desde meados dos 70 teria tido outro desenvolvimento, muito mais lento e certamente com outro sentido econômico, político e social. Esse processo, como se sabe, gerou vários efeitos perversos para a maioria dos países: a) automação e alterações estruturais nos processos produtivos, precarização do mercado de trabalho; ampliação, para 35 milhões, do número de desempregados na OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico); substituição crescente de trabalho pouco qualificado; b) uso de insumos modernos, substitutivos de tradicionais em grande parte produzidos nos países subdesenvolvidos; c) sucateamento muito rápido de equipamentos de produção e de consumo; d) crescimento desmedido do poder monopólico (no comércio exterior, no acesso à tecnologia, no investimento direto, etc) dessas multinacionais, aumentando-lhes a capacidade de tomar decisões, muitas vezes sem consulta aos Estados onde se localizam, para promover seus ajustes e reestruturações. As transformações em marcha fizeram com que os países desenvolvidos se organizassem em três grandes blocos: o asiático, liderado pelo Japão, o norte-americano (Nafta) e o da Europa Ocidental, liderado pela CEE (Comunidade Econômica Européia), a "fortaleza européia". Constituíram esses blocos, exatamente para levantar "muros", com novas formas institucionais de proteção. Fizeram-no, para se proteger, uns dos outros, na formidável corrida tecnológica e na luta concorrencial internacional levada a efeito pelas empresas multinacionais. Esta é a principal razão pela qual a Europa Ocidental avançou ainda mais, a partir de 1986, seu processo de unificação, além, obviamente, do velho temor de que uma Alemanha ainda mais forte pudesse "germanizar" grande parte da Europa Central e da Ocidental. Por outro lado, é preciso prestar mais atenção a outra das propostas neoliberais, que é a da "descentralização" regional, pois isto tem muito a ver com a atual crise do Estado. Para que a CEE pudesse acelerar seu processo de unificação, sua Comissão Executiva tem procurado aumentar o poder institucional das várias regiões européias, por exemplo, instituindo o Parlamento Regional Europeu, com seus membros indicados pelas regiões, e não pelos Estados Nacionais. Esquemas especiais de financiamento também têm contribuído para o fortalecimento maior das regiões e menos dos Estados. Não é por outra razão que "descentralização" "virou moda" na América Latina e, no Brasil, a Constituição federal de 1988 encarregou-se disso, notadamente no capítulo tributário. A aplicação dos preceitos neoliberais não só revolveu a crise do Estado, como também recriou e ampliou focos de recrudescimento da miséria e da crise social em quase todos os países: maior desemprego, precarização do mercado de trabalho e drásticos cortes nos gastos públicos sociais. Enfim, a palavra "eficiência", antes subordinada à palavra "equidade", foi alçada ao primeiro plano. E que forças políticas foram seus maiores promotores? Thatcher, Reagan, Salinas e Pinochet não foram exclusivos. Vários dos antigos partidos socialistas e a maioria dos social-democratas europeus e latino-americanos têm sido seus mais fervorosos aplicadores. Teimam em não enxergar a situação deplorável da África negra, o desastre em que se encontra o ex-bloco socialista e as incertezas em que se encontra a maioria dos países latino-americanos. O Brasil, desde a crise dos anos 80, tem sido o grande rebelde do Terceiro Mundo, resistindo aos ajustes ortodoxos, até 1989. De lá para cá, infelizmente, tem ouvido muito o "Canto da Sereia", primeiro com Fernando 1º –o Impedido– e agora com Fernando 2º –o Príncipe–... É falso o dilema de que também temos que trilhar o mesmo caminho, com a mesma velocidade. Existem alternativas, mais soberanas e de maior justiça social. Texto Anterior: Entrelinhas Próximo Texto: Nelson o pugilista dramático Índice |
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress. |