São Paulo, domingo, 4 de setembro de 1994
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Nelson o pugilista dramático

J. GUINSBURG
ESPECIAL PARA A FOLHA

Nelson, o pugilista dramático
Obra de Nelson Rodrigues é marcada por procedimentos derivados do melodrama e do folhetim
A obra de Nelson Rodrigues é hoje objeto de uma espécie de reconhecimento por aclamação. Seja porque o seu trânsito pelos leitores e palcos, com todas as transformações ocorridas, tenha provocado um melhor entendimento ou uma decodificação dos sentidos de seu discurso e dos valores de sua organização artística, seja porque a qualificação de suas metaleituras tenha impulsionado uma espécie de salto qualitativo, que a transferiu para o plano simbólico do consagrado.
Mas nem sempre foi assim. No corpo-a-corpo com os públicos e as críticas contemporâneas do autor, muitas vezes ele ficou por baixo, quase beijando a lona. As censuras dos adversários pensavam tê-lo nocauteado com juízos que iam da trivialidade folhetinesca ao melodrama barato.
Não foi portanto apenas uma questão de "ismos", expressionismo, surrealismo, modernismo, ou de "istas" e sequer de Dostoievsky, O'Neill, Arthur Miller, Tennessee Williams, Oswald de Andrade, embora estes referenciais tivessem estado presentes e, sem dúvida, houvessem atuado de algum modo sobre Nelson Rodrigues.
Mas ele os absorveu em um processo de produção cujas molas fundamentais nunca foram privilegiadamente estéticas ou movidas por ditames de estilo ou de tendência. Em primeiro lugar, para ele, vinha o poder de fogo comunicacional de seu texto. Como homem de jornal que era, na essência, procurava a forma mais direta e mais impactante de transmitir a sua "matéria" e suas projeções.
Isto significava na sua escritura quatro coisas: imagens sintéticas e impressivas; narração concisa e dramática; linguagem precisa e direta; moralidade candente.
Ora, estas virtudes encontravam-se à sua disposição em modelos conhecidos de há muito e que o século 19 explorara à perfeição: o folhetim e o melodrama. Não que ele por deliberação consciente se tivesse proposto a cultivá-los. Ambos lhe eram inerentes. Em ambos foi desde logo um mestre. Não importa como os tenha lavrado ou temperado.
O melodrama, a máquina dos clichês e dos golpes teatrais, das peripécias e inversões da sorte, das fintas do destino e das fatalidades do acaso, proporcionaram-lhe a imediatez das oposições violentamente contrastantes e insensatamente surpreendentes. Nele, o dramático corre sobre trilhos ou, melhor se diria hoje, tem impulso de foguete. Daí a sua extraordinária fortuna "estética" (e não apenas pública) no teatro moderno. Porém, nas mãos de Nelson Rodrigues, ele se tornou a forma de moldar no banal, no rotineiro, a exemplaridade trágica da existência humana. O seu teatro o retoma como nenhum outro, na moderna dramaturgia brasileira.
E é no irmão gêmeo do melodrama, mas cuja face está voltada para o épico, que Nelson Rodrigues vai enredar os fios de suas histórias. Sobre as relações entre ambas as modalidades não é preciso entender-se. São hoje pauta presente dos estudos e da crítica de gêneros. Mas é evidente que o autor de "Meu Destino é Pecar", "A Vida Como Ela É", etc..., serve-se com incrível perícia do jogo entre emoção e interesses, dos lances entre o operístico e o farsesco, entre o romantismo de açúcar concentrado e a brutalidade real do cotidiano, para mais uma vez, no folhetim, não só apresentar pela trama dos enganos, os enganos da trama.
Pois não se trata apenas de mostrar com toda a força e espantar tanto mais. Porém –ele não o diz– se trata de revelar e, por que não, de dar uma "lição", com um murro na cara: a moral da história.
Perguntar-se-á, mas que "lição", num autor que abomina a "tese" e o didatismo, ensinar o quê? Aí entra algo que, apesar do caráter altissonante e até dissonante das palavras no contexto, pode-se chamar de filosofia da vida. A "filosofia" de Nelson Rodrigues. Evidentemente uma contradição em termos.
Mas veja-se ao que chegam as operações com o folhetinesco e o melodramático. Sem dúvida, em primeiro lugar, como efeito sensível da obra –ao tragicômico, ao grotesco. As criações do dramaturgo e do romancista exibem figuras, jogos de situação e linguagem que armados com o kitsch e o mito, por exemplo, com os valores ritualizados e as práticas automatizadas, com os impulsos instintivos e as regras sociais, com os psiquismos obsessivos e as conveniências racionais se carregam, na dança de suas farsas trágicas, de estranheza, absurdo e, em última expressão, de grotesco.
Esse efeito, que aflora quase sempre pelo lado do humor e do caricato, não visa ao cômico. O seu objetivo é levantar o alçapão das mentiras convencionais da sociedade e expor o fundo negro da mente e da vida dos homens e das mulheres, brasileiros, cariocas, mas nem por isso menos plenamente representativos da condição humana, isto é, universais.
Antunes Filho o demonstrou em suas encenações do teatro rodriguiano. Assim, graças a uma penetrante leitura dramática e a uma inventiva recuperação imagística, plena de teatralidade, "Álbum de Família", nas várias versões do ciclo de "O Eterno Retorno", tornou-se o retrato quase emblemático do social e do arquetípico, não só em recorte local. O mesmo acorreu, subsequentemente, com "A Falecida" e, mais ainda com "Os Sete Gatinhos", montagem magistral do diretor do CPC, que elevou o suburbano infortúnio da "vida como ela é" ao fatum da tragédia grega.
Pois bem, neste desfile do grotesco em passarela nacional o que ressalta, malgrado os protestos de intenções edificantes e torcidas patrióticas, é a profunda angústia existencial, onde o positivo e o negativo, a vida e a morte, o são e o doentio, o corrupto e o santo se anulam mutuamente em um abraço de união carnal.

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