São Paulo, domingo, 4 de setembro de 1994
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Corpos em movimento

ANA FRANCISCA PONZIO
ESPECIAL PARA A FOLHA, EM NOVA YORK

Folha – O espaço circular de "Ocean" é uma referência à filosofia oriental?
Cunningham – Pode ser, no sentido de que "Ocean" possui múltiplos enfoques.
Folha – "Ocean" é uma homenagem a Cage?
Cunningham – Na verdade, é continuação de uma idéia que nós dois tivemos. Infelizmente, não foi possível completá-la juntos. "Ocean" não é necessariamente uma homenagem. Mas não vou me importar se o público pensar que é um tributo a Cage.
Folha – Você usou computador para coreografar "Ocean"?
Cunningham – Alguns movimentos, algumas fases eu criei através do computador. Talvez 20% da coreografia.
Folha – Como você transfere os movimentos criados por computador para os corpos dos bailarinos?
Cunningham – Primeiro coloco os movimentos na memória do computador e isso me permite trazê-los de volta. Obviamente, faço isso quando não estou trabalhando com o elenco.
Depois, levo o monitor de vídeo para o estúdio, as imagens registradas são projetadas numa grande tela, para que os bailarinos possam ver e depois desenvolver os movimentos feitos no computador.
Folha – Você não acha que o computador torna a dança menos humana?
Cunningham – Não, acho que esse pensamento é um equívoco. Um automóvel ou um refrigerador tornam a vida menos humana? Então, por que pensar que os computadores podem tornar a dança menos humana?
Seria ridículo eu querer que os bailarinos se assemelhassem às imagens do computador. Acima de tudo, quero que eles sejam bailarinos.
Folha – O que "Life Forms" te proporciona?
Cunningham – "Life Forms" é um sistema de notação que ainda está num estágio elementar. Trata-se de uma notação visual, não simbólica. Em geral, os coreógrafos demonstram o que desejam para os bailarinos.
Mas, para mim, dança é um apelo imediato, que não precisa de tradução. Com o computador, o bailarino vê o que supostamente é um determinado movimento e tenta fazer o seu.
Folha – Você tem trabalhado com procedimentos do acaso, vídeo, computador. O que mudou e o que permaneceu em seu trabalho, ao longo dos anos?
Cunningham - O que aconteceu de principal, ao longo dos anos, foi a complexidade. Hoje os movimentos de minhas coreografias são mais complexos do que costumavam ser.
Um bailarino que trabalhou comigo anos atrás veio ver um ensaio de "Ocean" recentemente e exclamou: "Deus! É muito difícil! Eu nunca conseguiria fazer isso!".
Foi o que aconteceu: se alguém fica olhando os movimentos da coreografia, começa a ver outras possibilidades e, se lhe interessa, tenta explorá-las.
Folha - No momento você está pensando em alguma questão especial sobre movimento?
Cunningham - Sempre estou interessado em alguma coisa que eu ainda não sei sobre o movimento. Algo que ainda não me seja familiar. Isso sempre me atrai e eu tento explorar até onde for possível.
Folha - Você acha que a multiplicidade de movimentos e situações de suas coreografias simbolizam, cada vez mais, a descontinuidade de nossa época?
Cunningham - Não vejo tanto como descontinuidade. Acho que é outro tipo de continuidade, que se move em função do tipo de comunicação que recebemos, da maneira como a recebemos, da multiplicidade de coisas, sons e imagens com as quais lidamos.
Folha - Você nunca recusou a técnica do balé clássico. Ao mesmo tempo, em suas coreografias você mistura técnicas clássicas, dança moderna e movimentos cotidianos...
Cunningham - Correto, eu não rejeito o balé clássico. O que me interessa no clássico é a técnica do uso das pernas, que não têm muita ênfase na dança moderna, cujo enfoque são os movimentos do torso. Combinando tudo, aumentam minhas possibilidades.
Não uso a técnica clássica no sentido do estilo a ela associado. O que me interessa é explorar possibilidades e levantar questões sobre o movimento.
Folha - Como você aplica um procedimento de acaso à coreografia?
Cunningham - Na vida há sempre muitas situações determinadas pelo acaso. Levando isso ao movimento ganha-se, mais uma vez, novas possibilidades.
Através de procedimentos de acaso defino, por exemplo, qual sequência de movimentos segue-se a outra –isso quando já tenho quase todas a sequências prontas.
É o acaso, como a cara-ou-coroa de uma moeda, que decide qual movimento ou frase coreográfica virá depois, se os bailarinos devem estar de frente ou de costas para determinado ponto, se certas sequências serão dançadas em conjunto ou não.
Como não depende da escolha pessoal, isso pode ocorrer não pela coordenação física ou pela memória física do movimento.
Isso faz com que, repentinamente, eu me defronte com situações de movimentos não-familiares e eu tenho que procurar outros caminhos. Daí surgem novas questões e descobertas.
Folha - Os procedimentos de acaso não podem fazer você perder o controle da coreografia?
Cunningham - Não, de forma alguma. Eu não uso os procedimentos de acaso dessa forma. Eu faço as fases de movimento em separado, longas ou curtas e, então, através de operações de acaso eu ganho compreensão sobre o encadeamento que será transmitido aos bailarinos.
Quando a coreografia está pronta, ela permanece fixa e, daí em diante, o processo é semelhante a qualquer tipo de dança convencional. Não há improvisação em meu trabalho.
Folha - Você também usa o "I Ching" como um procedimento de acaso?
Cunningham - Sim, eu uso os números do hexagrama e não os números que a hexagrama nos fala. Uso os 64 números do hexagrama das mais diferentes formas.
Em "Ocean", por ser uma peça de longa duração, eu dobrei o número. Em vez de 64, combinei 128 fases coreográficas, longas ou curtas.
Folha – Posso dizer que sua admiração por Fred Astaire gerou seu interesse pela associação entre dança, vídeo e filme?
Cunningham - Sim, eu vi Astaire em filmes, não no palco e, mesmo assim, ele proporcionava uma real experiência de dança.
Quando comecei a me interessar pelo uso da câmera, falei com bailarinos que já tinham trabalhado em televisão e eles se mostravam insatisfeitos com o resultado. No material filmado, o espaço tornava-se muito pequeno.
Mas, quando olhei através da câmera pela primeira vez, pensei: "É maravilhoso, é um espaço totalmente diferente". Então, comecei a fazer relações com o que havia visto de Fred Astaire. Mesmo com a câmera num único ponto, ele dava ao espectador uma visão total sobre toda a dança que realizava.
Folha – Você considera suas danças abstratas e meramente formais?
Cunningham - Não acho que sejam abstratas. São seres humanos realizando coisas. Coisas que eventualmente as pessoas não conhecem, mas não acho que isso as torne abstratas. Acho que movimentos pessoais são muito reais.
Folha – E sobre o conteúdo de suas coreografias?
Cunningham - Não existe conteúdo no sentido de histórias ou algo assim. O que existe é o movimento, a continuidade do movimento. Nesse sentido, as pessoas olham, observam, e podem ter suas próprias idéias sobre isso ou aquilo...
Folha – Você explora as mais difíceis oposições de movimentos em suas coreografias. Você concorda que isso dá um caráter dramático às suas danças?
Cunningham - Acredito que sim. Também há oposições de cores no ambiente cênico, como branco e preto, ou mesmo cores dramáticas, como preto e vermelho. É um tipo de oposição psicológica ou física. E oposições de diferentes tipos de movimento podem ser vistas como drama.
Folha – Marcel Duchamp foi realmente uma de suas primeiras referências?
Cunningham - Certamente. Marcel foi um artista surpreendente e permanece um mistério. O que ele fez não se ajusta a qualquer idéia convencional sobre como se relacionar com a obra dele.
Folha – Para você a dança é uma arte independente, que não necessita do apoio da música nem dos efeitos visuais. No entanto, por que você sempre trabalhou com músicos e artistas plásticos notáveis?
Cunningham - Quando você está andando pela cidade, por que você ouve? Estamos fazendo uma atividade, uma atividade visual e, ao mesmo tempo, temos o som.
Minha dança é como a vida. Realizamos alguma coisa e, ao mesmo tempo, temos coisas acontecendo e coexistindo ao nosso redor, num meio ambiente específico, em momentos determinados.
Folha – De onde vem sua idéia de descentralização do espaço?
Cunningham - Quando eu era estudante de teatro na Cornish School, em Seattle e mais tarde, em meus primeiros anos em Nova York, falava-se do foco único no palco. Era uma relação do centro para fora e eu não gostava dessa idéia. Achava muito fechada.
Quando comecei a trabalhar com meus próprios bailarinos, eu refleti sobre isso e comecei a fazer minhas próprias tentativas. Por exemplo, sobre as direções que o corpo pode tomar, de frente ou não para o público ou algum ponto.
Então, li aquela afirmação maravilhosa de Einstein, que diz: "Não existem pontos fixos no espaço". Passei a aplicar essa idéia à dança, à relação do movimento no espaço. Para mim, deixou de haver um ponto específico, que pode ser onde eu estou ou onde qualquer pessoa está.
Folha – Você vem de uma família de pai e irmãos advogados. Por que você decidiu se dedicar à dança?
Cunningham - Eu sempre quis estar no teatro, desde a infância... Simplesmente sabia que não queria ser um advogado.
Mas, acho que herdei uma grande característica de meu pai: a devoção muito forte ao que escolhemos para fazer.
Folha – A pergunta é óbvia, mas eu gostaria de saber o que é dança para você?
Cunningham - Num nível mais simples e franco, para mim dança é movimento no tempo e no espaço.
Em algumas de minhas primeiras danças havia um tipo de gesto natural, coisas que todos podem fazer. Era simplesmente a idéia de que qualquer movimento pode ser relacionado à dança.
A dança não precisa se apoiar num roteiro ou em uma música. A dança coexiste com a música e tem formas próprias. Animais não precisam de música para realizar formas e movimentos maravilhosos.
A vida é plena de movimento, por toda parte, de qualquer tipo e intensidade. A cortina de plástico, naquela janela da sala em que estamos, possui movimento.
Procuro manter meus olhos abertos para experiências que eu capto em termos de movimento e que, eventualmente, podem fazer parte de uma coreografia.

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