São Paulo, domingo, 4 de setembro de 1994
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Pressão demográfica dificulta vida no Cairo

NAGUIB MAHFOUZ

Quando eu era criança, o Cairo era muito menor do que é hoje. A cidade era cercada de campos e jardins. Não era um povoado (com mais ou menos 1 milhão de habitantes). Mas era tranquila e limpa. Muitas famílias possuíam casas próprias.
Em cada rua se via um prédio no meio das casas. Os prédios tinham três ou quatro andares e em cada andar viviam apenas uma ou duas famílias. Eu me lembro da casa de minha família, no bairro Gamalia. Mas hoje vivo num apartamento. Todas as casas antigas deram lugar a altos edifícios. Hoje o Cairo está superlotado. Ninguém jamais sonhou que chegaria a tal ponto. Hoje a cidade é toda de altos edifícios e está abarrotada de empresas, fábricas e escolas.
Basta dizer que a população atual é de 15 milhões de pessoas e que as ruas estão repletas de tantos carros que não sobra lugar para as pessoas. Muitos bairros se desenvolveram a esmo, descontroladamente. Foram formados por emigrantes vindos de outras regiões, especialmente da zona rural. Causam incômodo às pessoas e ao governo. Eles me cansam, me perturbam. Frequentemente me sinto perdido entre eles.
A forte pressão demográfica dificulta a vida normal na cidade e encontrar um apartamento tornou-se muito difícil. Este é um dos principais problemas com que se confrontam os jovens. Além disso o preço dos imóveis à venda tornou-se colossal e quase não há apartamentos para alugar. Parece que não consigo me encontrar em minha cidade natal. O único lugar onde me sinto seguro é dentro do meu próprio apartamento.
O problema de encontrar um lugar para morar obrigou grande número de pessoas a viver entre os túmulos de um cemitério, na chamada Cidade dos Mortos. Isto é triste e lamentável, tanto para os vivos quanto para os mortos. Antigamente as pessoas passavam uma noite apenas no cemitério, enquanto esperavam para enterrar seus mortos, de manhã.
Os ocidentais talvez não saibam que nossos túmulos não são como os deles. Os nossos têm cômodos, ou se um túmulo não tem cômodos, tem pelo menos um pátio e muros. Quem não tem onde se abrigar utiliza esses pátios.
A melhor solução para o problema seria a criação de cidades novas, menores. Mas não basta criar estas cidades. O transporte das cidades menores até as cidades principais precisa ser garantido, para que os que vivem nelas possam sentir que vivem numa cidade real. Elas precisam contar com todos os serviços, como água e eletricidade, e também segurança.
Se fossem bem distribuídas e bem construídas, estas novas cidades poderiam permitir a redistribuição da população.
Um dos grandes problemas é o econômico, o grande número de pessoas que vivem abaixo da linha de pobreza. Lembre-se de que o Egito ainda não esgotou sua capacidade industrial e agrícola. O país tem condições de incorporar sua população inteira. O verdadeiro perigo é que o desenvolvimento possa ser obstruído por um crescimento demográfico ainda maior.
Tudo pode ser resumido na necessidade da democracia ser completada. O processo democrático pode parecer nada ter a ver com o processo de crescimento demográfico, mas em uma sociedade democrática as pessoas contam com a opção do planejamento familiar e podem escolher o número de filhos que desejam. Na ausência de democracia, estas questões são impostas às pessoas.
Infelizmente nosso governo quer adiar este processo político, especialmente sob as circunstâncias atuais, dominadas pelo confronto com os fundamentalistas.
Os partidos oposicionistas pedem o cancelamento das leis de emergência que permitem que as pessoas sejam presas a qualquer momento. O governo deseja mantê-las para impedir a formação de partidos religiosos, especificamente um possível partido islâmico.
Existe um problema real, que é a necessidade de esclarecer as mentes das pessoas e libertá-las de pensamentos fundamentalistas. Os modernizadores vêem a questão da população como um problema ligado ao mundo como um todo e acham que poderíamos encontrar soluções lidando com ele numa base econômica e social.
Mas os fundamentalistas islâmicos avaliam esta questão à luz dos valores religiosos. Aceitam o que a religião aceita e recusam o que a religião recusa. Eles se mantêm inabaláveis em sua posição.
Na Conferência do Cairo, os religiosos rejeitarão qualquer resolução contrária à lei islâmica ("charia"), por exemplo, contra o aborto e a liberdade sexual. Os fundamentalistas islâmicos rejeitam a conferência por questão de princípios, porque acreditam que não leva em conta os valores religiosos.
Apesar dos fundamentalistas, as pessoas estão preparadas para usarem o controle de natalidade. A "charia" islâmica, na realidade, é favorável ao planejamento familiar que seja baseado na livre escolha entre marido e mulher, mas é contra qualquer método que se oponha aos valores religiosos.
A opinião pública é contrária ao aborto, a não ser por motivos de saúde. Esta é também a posição do papa. Os fundamentalistas se opõem à realização da conferência. Discordo deles. A escolha do Cairo para sediá-la nos confere um reconhecimento internacional bem-vindo. Mesmo assim, tudo depende das resoluções finais.
O presidente deste país já declarou que não nos comprometeremos com qualquer uma das resoluções que forem contrárias à "charia". Não acho que a conferência irá injustamente apontar falhas em meu país. Pelo contrário, acho que ela representa uma oportunidade gigantesca para nós.
Tradução de Clara Allain

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