São Paulo, domingo, 4 de setembro de 1994
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"Nel mezzo del cammin..."

Se a longa espiral superinflacionária significou durante tantos anos para a maioria dos brasileiros um verdadeiro Inferno na Terra, o alívio produzido pela estabilização abrupta dos preços poderia de certa forma ser comparado ao Paraíso. De fato, a sociedade parece encontrar-se como que suspensa num estado de graça ou, pelo menos, num estado de espírito em que a esperança volta a se afirmar –ainda que a saída de Rubens Ricupero do Ministério da Fazenda tenda a provocar um certo grau de incerteza.
O caminho rumo a uma economia estável, de todo modo, não depende apenas de otimismo e esperança. Ao Inferno, diz-se, foram muitos que tinham boas intenções. Passados dois meses da introdução da nova moeda, começa já uma segunda fase, um Purgatório talvez, em que é consideravelmente longa a lista de ajustes e correções de rumo, dolorosos, mas necessários.
É importante constatar, aliás, que a equipe econômica –que aparentemente deverá permanecer apesar da saída do ministro– tem plena consciência da necessidade desses ajustes. Assim, na mesma semana em que se completava o segundo mês, foram lançadas medidas corretivas nas áreas do câmbio e do crédito. As autoridades da Fazenda acenam também com uma iminente redução de tarifas de importação para inibir remarcações de preço.
Se a oportunidade desses ajustes é inegável e correta a precaução do governo, restam inúmeras dúvidas, entretanto, não apenas quanto à intensidade, mas também quanto à lógica maior que orienta tais ações.
A passagem de uma inflação de quase 50% ao mês para algo próximo de zero reforça, imediata e automaticamente, o poder aquisitivo dos consumidores, em especial nas camadas mais pobres da população. Quanto mais baixo o nível de renda, menor a sensibilidade do consumidor a juros ou condições de crédito. Aumentam a procura por alimentos e a possibilidade de gastar mais com cuidados pessoais.
Já nas classes de renda média, a decisão de consumo muitas vezes está condicionada menos pelas condições de crédito e juros e mais pela capacidade de o orçamento acomodar as prestações. Na prática, há não só um aumento de consumo que pressiona os mercados, mas também um arrocho de crédito, que pode afetar mais rapidamente a formação de estoques e as decisões de produção do que as decisões de consumo. Se a oferta se reduzir num momento em que a procura tende a aumentar, as pressões inflacionárias só poderão crescer.
Uma alternativa a esses riscos do aumento de demanda e, em consequência, de especulação, é ampliar a oferta facilitando as importações. O governo já dá passos nesse sentido, como a liberalização das regras de pré-pagamento de importações.
Mesmo essa estratégia, entretanto, não está isenta de riscos. De um lado, a liberalização das importações não significa disponibilidade imediata de produtos. Importar requer tempo, redes de distribuição preparadas e mesmo, em muitos casos, montagem de estruturas de apoio, como assistência técnica. E haverá certamente um debate sobre o grau e a extensão de liberalização desejáveis, por questões emergenciais, numa economia cuja indústria não pode, por motivos estruturais, ser sumariamente sucateada.
Há portanto entre o Inferno e o Paraíso decisões importantes que, invariavelmente, remetem a uma lógica maior na qual devem inserir-se os instrumentos de uma política de estabilização. Nesse terreno, entretanto, o governo avança pouco. E fica paralisado diante de providências que dariam horizonte mais duradouro ao plano, como a privatização e a reforma tributária.
O risco é ao final desembocar, depois de tantas voltas, exatamente onde o poeta Dante começou: no meio de uma floresta escura.

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