São Paulo, sábado, 10 de setembro de 1994
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O vírus e o prazer

JOSUÉ MACHADO

O progresso levou para as redações dos grandes jornais os computadores e com eles também alguns vírus até então desconhecidos. Eles afetam os computadores, destroem programas, devoram textos e produzem erros, ou melhor, distrações. O último que surgiu por aí é o vírus Meu-Nome-É-Enéas. MNEE para os especialistas. Ele ataca as máquinas e também provoca comichões em partes menos nobres do corpo dos digitadores. São chatíssimos. Enquanto se coçam desesperados com uma das mãos, os indigitados digitadores ou digitadoras trocam letras ou tocam teclas indevidas.
O MNEE é que tem provocado, por exemplo, coisas como "detentos cerram grades", "chacina mata" pessoas, "... o mais razoável é imaginar-se...", "Prazeiroso", etc.
1. Como sabemos todos, detentos serram grades quando lhes dão serras, porque cerrar é fechar, unir. "O monge cerrou os punhos irritado ao ouvir Lula chamar Fernandenrique de ateu."
2. Chacina não mata, porque já significa matança, morticínio. Do latim "ciccina", carne seca; depois, carne picada para fazer lingiça; matança de gado para alimentação; esquartejamento; depois, ferimento, matança de várias pessoas.
3. O se de construções como "o mais razoável é imaginar-se..." tem tanta utilidade quanto o vírus Meu-Nome-É-Enéas. Alguém fala "Osso duro de roer-se"? Ou "Foi fácil acreditar-se na sinceridade do Rubinho-Papa-Hóstias"? Trata-se do mesmo se MNEE.
4. "Prazeiroso" será proveniente do substantivo búlgaro prazeir, que significa orgasmo múltiplo? Ah, as montanhesas búlgaras, escalando escarpas atrás de bodes... Do indo-europeu chegou ao latim, pelo itálico, como "placere", com um pouco menos de intensidade, e transformou-se em prazer, mesmo assim significando gozo, delícia, satisfação.
Tudo culpa do insidioso MNEE. Até nesta coluneta, que deve por princípio conter apenas os muitos enganos decorrentes das limitações do autor, Meu-Nome-É-Enéas tem atacado. A última dele foi um acento indicador de crase diante do indefinido uma em "O mal do mau uso", de 27 de agosto passado. O trecho original era assim: "... que o má se refere a uma peça...". Saiu "...que o má se refere à uma peça...", com o sinal barbudo mal-humorado e indevido sobre a preposição a. Alguns leitores protestaram com razão.
Sabemos todos que há crase diante de uma em três casos:
1. quando uma se refere a hora – "O bilhete de Stepanenko saiu à uma hora."
2. na rara locução à uma (ao mesmo tempo) – "'Oba!', gritaram os petistas à uma, depois das confissões parabólicas do papa-hóstias."
3. na raríssima locução conjuntiva à uma... à outra (por uma razão... por outra razão, já... já) – "Pus-me à disposição da Globo à uma por meu ar beneditino, à outra, seduzido pelo poder e a glória."
Meu-Nome-É-Enéas faz essas coisas. Por falar no vírus MNEE, notaram todos como o tom de voz rascante do discurso ríspido e retesado do candidato Meu-Nome-É-Enéas se parece com o do fhrer Adolph? É só comparar um e outro por meio de gravações da voz do falecido para confirmar. Estamos falando apenas da entonação, da intensidade, do timbre áspero da voz raivosa, e não do conteúdo do discurso, o que não cabe aqui. O do fhrer (líder, guia, chefe) era rancoroso, râncido, reloucado, reiúno, rábido, refalsado, redutivo, repetenado e regressivo. O de Meu-Nome-É-Enéas é reedificador.
Mesmo no timbre da voz, Meu-Nome-É-Enéas está um pouco atrasado na História. Por que ele não fala beneditinamente?
JOSUÉ R.S. MACHADO é jornalista, formado em Línguas Neolatinas pela PUC-SP. Colaborou em diversos jornais e revistas.

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