São Paulo, sábado, 10 de setembro de 1994 |
Texto Anterior |
Próximo Texto |
Índice
Intermezzo, opus nº 1
CARLOS HEITOR CONY RIO DE JANEIRO – Era uma noite solitária dos anos mais antigos do passado. A lembrança de um verso de Edgar Allan Poe, um filme de Stanley Kubrick na fase experimental, em preto-e-branco, um resto de canção perdida no ar ("Hindustan" ou "Who") –e de repente o grande silêncio das coisas e dele mesmo.Em vão tentou recriar esse silêncio geral e tão dele, buraco negro que sugava o tempo, princípio e fim de si mesmo. Toda vez que ouve um concerto, entre um movimento e outro, seja um concerto grosso de Bach ou uma sinfonia de Mahler, ele quase atinge esse silêncio que o persegue, pior, que o ameaça. A memória é um filme em preto-e-branco por causa desse negro buraco aberto na carne. Quando não tem nada em que pensar, diverte-se tentando transformar a memória em cor. Quando viu o primeiro filme colorizado por computador achou que estava sendo roubado; deveria ter registrado industrialmente o processo e o mau gosto. Por isso mesmo, quando consegue pensar no dia de ontem em preto-e-branco, sabe que aquilo será memória –o resto de memória que lhe resta. Faz o balanço de algumas situações, é generoso quando descobre que pode pensar em alguém ou em alguma coisa e descobrir que ambos estão em cor, como um anúncio de refrigerante ou como a capa de uma revista. São coisas que ele reparte com outros, não fazem parte dele. E surge um vulto lá no fundo, dos anos mais antigos do passado, em preto-e-branco, terrível como um espectro, ridículo como um pierrô, a branca face banhada de luar. É nesse instante que sente a urgência, a necessidade do grande silêncio. Leu em algum lugar que depois do orgasmo há sempre um silêncio interior e profundo, no tamanho proporcional do próprio orgasmo. Silêncio que se confunde com um cansaço –às vezes um cansaço triste. Tentou checar a hipótese. Beirou perto, raspou pelo silêncio, mas não foi a mesma coisa. No fundo, no fundo, teve vontade de gritar como um samurai, samurai em preto-e-branco, samurai que perde todas as batalhas. Texto Anterior: Eleições casadas Próximo Texto: Lucros e votos Índice |
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress. |