São Paulo, terça-feira, 13 de setembro de 1994
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Virtudes privadas, vícios públicos

RENATO JANINE RIBEIRO

A discussão sobre o caso Ricupero está mal conduzida. Os holofotes se têm enfocado na sua confissão, pela qual ele é acusado e se acusa de imodéstia, e não nos atos que confessou.
A maioria das manifestações assim personaliza as questões, em vez de discutir o relevante no caso, que é o modo como ilustra a dificuldade dos brasileiros, mesmo os de melhores qualidades pessoais e de maiores serviços prestados ao país, em ter uma conduta republicana.
Deixemos então de lado o caso pessoal e examinemos os dois problemas mais amplos que aqui surgem. Primeiro, temos a lógica que o episódio expõe e que reside no fato de ministros e órgãos da mídia acharem legítimo manejar informações para eleger um candidato.
Claro que um governo tem direito de defender a continuidade de suas ações: se a política democrática costuma passar pelos partidos, é óbvio que o governo é exercido por um ou mais deles, e será absurdo pedir-lhe imparcialidade. Mas disto não se segue que se confunda o Estado com um partido, como, infelizmente, tende a ocorrer entre nós.
Uma identificação se efetuou: a salvação do Brasil está no Plano Real. Este foi criado por Fernando Henrique. Logo, opera-se uma identidade Brasil = Plano Real = candidato tucano. Ora, isso traz um resultado péssimo do ponto de vista quer da democracia, quer da lucidez.
Qualquer oposição ao candidato do PSDB é lida como oposição ao Brasil, e se vê reduzida, pelas mentes generosas, a ingenuidade ou insensatez; pelas autoritárias, a traição.
Essa identificação ronda boa parte do discurso político, ora na voz de alguns candidatos, ora na mídia que os apóia. Ela é má para a democracia, porque um princípio básico desta é que a legitimidade não tem endereço único. A retórica eleitoral pode até se exaltar contra o adversário, mas ele é apenas isso: adversário, não inimigo.
Na democracia, a oposição principal não é a do certo ao errado, do bom ao mau. Aliás, a qualidade da Folha está justamente –desde pelo menos a doença de Tancredo, que ela noticiou, ao contrário da maior parte da imprensa– em recusar que supostos valores nacionais a levem a omitir informações essenciais.
Ela terá cometido injustiças neste percurso –um casarão da Paulista demolido–, mas recusou duas coisas. Primeira: a infantilização do leitor, de quem certas notícias deveriam ser ocultadas em nome do superior interesse do país. Segunda: o pressuposto de que tal interesse esteja todo de um lado, seja este qual for.
Não é esta, porém, a regra na mídia ou no serviço público. Andam juntas, hoje, a instrumentalização dos meios de comunicação e a da máquina do Estado, governadas ambas por uma convicção avessa ao espírito republicano.
O amor à coisa pública e a recusa do patrimonialismo monárquico fixam como princípio uma indiferença do Estado aos partidos, que podem se revezar em seu comando, mas não se devem identificar com ele.
Sabemos que é difícil não confundir o interesse público com o de um partido, ou sequer de uma política. Essa confusão ocorre tanto na esquerda como na direita. Mas quem hoje mais efetua essa identidade é, justamente, o lado oficial, apontando a oposição política como oposição ao país. E é isso (nosso segundo problema) o que leva gente honesta a sentir-se autorizada a não ter escrúpulos.
Não será este um de nossos maiores problemas? A maior parte das manifestações em torno da demissão do ministro centra-se nas qualidades do homem. Sabemos praticar e respeitar as virtudes privadas. Mas temos enorme dificuldade em traduzi-las em virtudes públicas ou cívicas –em viver a república.
Sempre que podemos, fugimos desta dimensão, na qual somos um terrível fracasso, e nos asilamos no mundo tranquilizante do lar ou do indivíduo. Temos enormes qualidades como indivíduos e tremendos defeitos como cidadãos ou governantes.
Por isso, no caso em pauta, a contrição acaba sendo do homem privado, que já não sabe o que dizer da política. Por isso, a confissão do ministro é privatizada (loucura, arrogância) e tem esquecidos seus efeitos públicos. Por isso, a solidariedade é com o indivíduo, já que não sabemos mais o que dizer da política.
Talvez o nosso desafio seja construir uma ponte que vá do pessoal ao público: fazer que a decência não apareça só no "mea culpa" individual, mas também na ação política, isto é, naquela que muda o mundo.
Acabemos com esta perversão cultural que nos faz, ao arrepio da célebre frase de Mandeville, ter virtudes individuais e vícios públicos.
Uma ética incapaz de enxergar além do indivíduo, de propor uma fala à sociedade, em suma, de fazer política, só pode ser pobre. Não teremos dignidade social se não soubermos dar o passo que conjugue a fala ética com a prática política.

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