São Paulo, terça-feira, 13 de setembro de 1994
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Preservação cultural e extinção física

CLÁUDIO WEBER ABRAMO

Reportagem publicada na Folha no dia 30 de agosto a respeito de opiniões de Hélio Jaguaribe sobre índios deu lugar a manifestações deplorando o que se classificou como atitude eugênica e/ou fascista daquele sociólogo.
Os comentários tomaram em geral a forma de xingatórios. Salvo lapso, ninguém saiu a público para discutir racionalmente a questão central: a integração das populações indígenas à sociedade.
Hélio Jaguaribe propõe o que, na prática, é a extinção cultural do indígena brasileiro. A mesmíssima proposta, embora calcada na integração econômica (e não "educacional", que parece coisa de jesuíta) foi adiantada anos atrás pelo autor das presentes linhas, em artigo publicado na "Revista USP" nº 13. Vale a pena retomar a argumentação.
A ameaça à integridade do índio brasileiro reside na ocupação de sua terra por invasores, sejam eles representantes de interesses econômicos, sejam contingentes miseráveis oriundos de outras regiões. Em consequência, o índio tem sido sistematicamente dizimado.
Inúmeros antropólogos asseveram que cabe ao Estado o dever de proteger o índio. Isso se faria definindo-se reservas territoriais em que língua, costumes etc. dos índios ficariam preservados, em especial se, de preferência, inexistir contato daquelas comunidades com a cultura do "homem branco" (que não é "branco", mas mestiço).
A política indigenista brasileira sempre seguiu formalmente essa linha. Porém, o mesmo Estado que passa um lápis por sobre um mapa e estabelece limites de reservas exime-se de tomar providências para que elas existam na prática.
Examinemos o que isso acarreta. O preservacionismo cultural –em distinção ao preservacionismo material– pode ser um tanto contaminado por uma visão do índio como "ser selvagem", diferente do resto dos seres humanos. A reserva concebida como limites para a preservação cultural do índio e para a defesa de sua integridade como nação tem ecos de jardim zoológico. Mas o problema principal da idéia da preservação cultural é o seguinte.
Para que uma cultura local se preserve, precisa exibir vigor frente à cultura circundante. Só isso garante sua subsistência, "canibalizada", como bem expôs na década de 1920 o líder do movimento antropófago, Oswald de Andrade.
Imagine-se como seria o mundo se toda e qualquer cultura humana tivesse sido "preservada" (deixando de lado que se trata de uma contradição em termos, uma vez que a sobrevivência de uma cultura só se dá em detrimento do desenvolvimento de novas culturas). Com sorte seríamos, todos, homens das cavernas.
Este jornal não existiria e o leitor estaria ocupado em preparar o couro de algum animal abatido com machado de pedra. A Terra seria ocupada por milhões e milhões de microculturas disparatadas entre si, todas autônomas –a Babel, literalmente.
Enquanto antropólogos defendem o indefensável, prossegue inabalável o processo de ocupação das reservas, sem que os representantes do Estado tenham condições de evitá-lo, caso alimentassem qualquer intenção nesse sentido. As reservas acabam meramente por cumprir a função de aplacar as demandas por uma atitude mais civilizada perante o índio.
Exemplo de hipocrisia? Intenção deliberada de extinguir o índio entoando cânticos? Não se duvida de que isso esteja na mente de alguns. Contudo, o motivo principal de a política de reservas não funcionar é sua inviabilidade objetiva. Isso se dá por duas razões.
A primeira é o caráter anárquico com que se dá a expansão nas fronteiras de ocupação: trata-se de grupos humanos em geral desesperados, que mal subsistem de uma exploração agrícola ou extrativa que conduzem de modo neolítico. Essas populações são tão desgraçadas como os índios que pressionam.
Não há escolas, postos de saúde, eletricidade, água tratada, comida. Jornais, revistas, livros, para quê, se ninguém sabe ler? Nessas condições, é irracional esperar que a polícia aja eficazmente na proteção das reservas, mesmo se recebesse instruções para isso e não fosse conivente: não haveria sequer efetivos suficientes.
A segunda e principal razão é econômica. A ocupação de vastas áreas na Amazônia foi promovida, tanto no atacado como no varejo, com as bênçãos e os incentivos dos governos estaduais e federal. As unidades da Federação envolvidas são paupérrimas, não têm arrecadação digna desse nome, dependem quase integralmente de repasses do governo central, não raro através de mutretas orçamentárias. Logo, tudo fazem para aumentar sua atividade econômica. Ocorre que a única coisa que têm a oferecer é a floresta, com o que ela tem escondido.
A concepção de que uma reserva indígena deve permanecer intocada sob quaisquer circunstâncias choca-se frontalmente com elementos de natureza pragmática: um depósito mineral importante, descoberto em certa área, será explorado independentemente de outras considerações.
Nenhum governo, em nenhum país do mundo, sob qualquer regime imaginável, deixaria de fazê-lo. No Brasil, a pretensa inviolabilidade dos direitos indígenas impede que isso aconteça de forma legal; logo, acaba por acontecer de modo ilegal.
A única linha de ação possível frente às realidades desse estado de coisas é a integração econômica do indígena brasileiro. Suas terras devem continuar a ser deles, mas não incondicionalmente: devem ser desenvolvidas, cultivadas, irrigadas, adubadas, mineradas por companhias controladas pelos índios. Durante alguns anos (20, por exemplo), as terras permaneceriam vinculadas às nações indígenas. Depois disso, poderiam ser alienadas à vontade, como qualquer propriedade.
Caso se insista na manutenção do índio "em estado natural", estar-se-á na prática condenando-o à extinção física. Propõe-se, ao contrário, a preservação do que ele tem de mais precioso, que é sua humanidade.

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