São Paulo, quinta-feira, 15 de setembro de 1994
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Tempestade sobre Ricupero

ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE

"Oh, maravilha! Quantas criaturas benevolentes aqui existem! Quão beata é a humanidade! Oh admirável mundo novo, que nele contém tal povo!" Oh, fantástico! Tão perverso poder de persuação! Esse poder hipnótico da televisão! Sob ele sucumbem até mesmo suas mais gloriosas estrelas. Boris Casoy, voz e referência maior da classe média brasileira, resume em seu reducionismo categórico o julgamento popular. "Quão beata é a humanidade" para a cândida Miranda, resguardada da realidade pelo poder da magia de Próspero, no mundo de encantamento imaginado por Shakespeare, em sua obra-prima final, "A Tempestade".
Não há por certo altar mais adequado para expurgar seu pecado. No "Fantástico", palco emblemático da ilusão e da farsa, se redime o ministro Ricupero. Mais vale um pieguíssimo "Fantástico" produzido pelo sr. Marinho que a tremenda "Tempestade" magicamente engendrada pelo temível Próspero. Verte algumas lágrimas em frente aos seus quatro filhos, todos com asinhas. "Quão beata é a humanidade." Redenção sublime. O "Fantástico" venceu novamente. Derrotou este país de 150 milhões de Mirandas.
"Oh! Admirável mundo novo." Houve uma falha eletrônica. Toda uma vida de serviços para o país. Uma conduta irrepreensível, destruída por 15 minutos de humana vaidade. Um arroubo extemporâneo. Boris já o absolveu. E com ele 150 milhões de Mirandas enfeitiçados pela magia do "Fantástico". Esta é a grande burla encenada neste admirável mundo novo.
Mas imaginemos apenas por um momento o que seria o "Fantástico" deste mesmo domingo se, por acaso, aquela "falha eletrônica" não tivesse ocorrido. Vamos lá, Boris, faça um esforço. Vamos lá, vocês, Mirandas brasileiras, concentrem-se.
Aquela conversa insólita teria se extinguido nos ouvidos do indiferente Monforte, talvez sem nem sequer atingir a sua memória. E, no domingo, os Mirandas brasileiros teriam assistido ao ministro Ricupero, com aquele mesmo ar angelical, inescrupulosamente escamotear a verdade sobre a inflação, desviar cinicamente a atenção da opinião pública do IPC-r com uma invençãozinha sobre a queda do preço da gasolina e enaltecer o Plano Real do heróico Fernando Henrique. E não teria remorsos.
Na saída, daria uma piscada conivente para o Monforte, para mostrar como estava sendo esperto e como, em conluio com a Rede Globo, continuava a iludir esse povo sonso. E com a consciência limpa continuaria com sua obscena conspiração com a Globo e esse governo de Stepanenkos da vida para eleger o Fernando 2º e manter o "status quo".
E haverá alguém com mais que meia dúzia de neurônios que duvide de que este é o enredo que se desenvolveria? Então do que se arrependeu o ministro senão de ter sido pego em flagrante? Nem sequer daquele pequeno arroubo pueril durante os 15 minutos. Muito menos de sua longa e insidiosa cabala com a Globo para eleger o candidato das "forças hegemônicas convergentes" cujo objetivo comum é a conservação do poder.
Sim, uma conspiração não precisa ser pactuada em um beco escuro ou em uma solene mesa de executivos. Não precisa haver papel assinado, juramento sob a espada ou sangue trocado. Basta uma insinuação, um aceno de cabeça. Esta era a mensagem cifrada do ministro.
Toda a conversa de Ricupero tem uma leitura clara, a que muitos se recusam porque, como Miranda, preferem ver nele a "humanidade beata". Ele dizia e repetia. "Estou cumprindo minha parte do pacto. O endiabrado Osiris já foi encerrado honrado no tronco do Elmo. Diga ao nosso patrão que ninguém vai mexer em seus privilégios nem em sua declaração de rendas. O primeiro Fernando deu tanto trabalho e não deu certo. Este segundo, graças à minha ajuda, seu maior eleitor, vai ser eleito mais facilmente e será cooperativo, pois eu vou estar no governo para assegurar isto. Ele não pode deixar de me convidar."
Que o leitor leia novamente o diálogo parabólico, mas com os olhos de Ariel, não mais com os de Miranda. Que não se deixe iludir pelo cenário piegas parido posteriormente pela artimanha fantástica. Ricupero é, de fato, uma peça menor, mas plenamente consciente de um grande montagem.
As tais forças hegemônicas, reveladas parcialmente por esta Folha, de maneira tão significativamente simbólica, no lixo do comitê de campanha de Fernando 2º. A rede Pão de Açúcar, costumaz transgressora das leis e da confiança popular, a rede de bancos que negociou a contenção da inflação, provisoriamente embora, por juros leoninos.
E houvesse o repórter escarafunchado um pouco mais fundo o lixo de Fernando 2º, lá teria encontrado resíduos do FMI, da Wall Street e do Departamento de Estado Americano, além dos da Rede Globo. E no esgoto, essa plêiade de apóstatas da intelectualidade de esquerda.
Pois bem. O que estarrece os menos desavisados é que a mesma fórmula ainda virá a ser aprimorada. Quantos Fernandos ainda vão ser fabricados pela Globo? Com ou sem a contribuição dos pequenos Ricuperos. Que chances terá este país governado por esta coligação de "forças hegemônicas"? Invoco, pois, a "alma profética" de Shakespeare.
Próspero, simultaneamente constrangido pelo drama de Miranda e reabilitado em seus direitos, em um momento de lucidez repudia a magia e libera seus domínios da ilusão e da farsa. "Nossos festejos agora chegaram a termo. Esses nossos atores, como eu previra, são todos fantasmas, se dissolveram no ar, no tênue ar. E como no tecido imaterial desta visão, as torres encapuçadas por nuvem, os palácios deslumbrantes, os templos solenes, a própria grande Globo, de fato, e tudo que ela possui, se dissolverá e, como este insubstancial cortejo que se dissipou sem deixar traço. Nós somos da mesma substância de que são feitos os sonhos, e nossa pequena vida é retocada por um sono."

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