São Paulo, domingo, 18 de setembro de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Instamatic

RICARDO SEMLER

O rapazinho até que era prestativo, sabe? Na verdade um vigia, mas hoje à noite um burocrata da Receita Federal. Desço as escadas dois degraus por vez, e dou uma derrapada, seguida de freada, no meio do melê geral.
Umas vinte pessoas haviam encontrado este recôncavo do aeroporto, todas com o mesmo objetivo pseudomatreiro em mente: fazer uma declaração de registro de objetos estrangeiros. Para poder voltar ao país com um bem que nos pertence, mas que ninguém da Receita sabe dizer como chegou em nossas gordas patinhas.
Lá estamos, ansiosos como senhores à espera de um exame de próstata. Um raparigo com cara de atleta irrompe esbaforido pela fila. Ai, meu Deus, que fila, vou perder meu vôo! Bons samaritanos, o convidamos para um passinho à nossa frente. Não tarda a nos informar que é campeão mundial de ginástica olímpica. Devidamente impressionados, damos mais um passinho atrás.
O nosso líder espiritual, o vigia receituoso, pigarreia e então nos empurramos, com toda a firmeza delicada que caracteriza a viajante burguesia, em busca do almejado formulário. Neste rearranjo o campeão perde o lugar.
Risinhos nervosos, lemos as parcas instruções. Tremores nos cruzam a alma ao ver o carimbo que adverte para o risco de não termos nota fiscal de compra. Disfarces gerais –claro que temos nota fiscal, né, seu Osiris. O óbvio.
Pode até estar lá em casa, numa daquelas gavetas que se renderam à naftalina, mas que a gente temos, temos. Mais 15 minutos e o atletinha se desespera, pessoas devolvem canetas emprestadas ou se agacham para preencher o formulário –não há, claro, lugar para apoiar.
O rapaz federal desaparece por detrás de portas suspeitas. Foi mandar carimbar na Rangel Pestana, diz um moço da fila, e damos todos aquela subgargalhada sutil.
Começa um debate sobre a exigência ou não de taxa, e terminamos por concluir, decepcionados, que o serviço é gratuito. A japonesinha do meu lado desenha, dolorosamente, os dados e nome de sua máquina fotográfica, uma Kodak que só não é Instamatic para não ofender os nipônicos.
Tem que ter número de série, gente, berra o vigia –se não tiver, bau bau. Pânico no ambiente, máquinas e filmadoras são reviradas ansiosamente, não é possível, este bichinho tem que ter número de série.
Ai, seu moço, dizem as garotas da excursão, como quem canta guarda de trânsito, só dessa vez, vai. Mas o oficial do dia é intransigente em sua defesa do interesse nacional.
A japonesa, que se chama Honda (me pergunto se ela é uma bilionária disfarçada de turistinha por medo de sequestro, ou se tem tanto Honda lá quanto Silva aqui), completa tudo, sem lacunas visíveis. Estou aqui há trinta minutos, suspira com ar zen de resignação oriental.
Já vai, diz o guardinha federoso, e desaparece por mais sete minutos por detrás do único pôster, que nos explica em detalhes como passar de automóvel pela fronteira do Paraguai.
Quando ele retorna, todos recebem seus salvo-condutos e saem cantando pneu. Sobram a japonesinha e eu. O dela, explica o vigia, não foi registrado. Ela empalidece, como num desafio à natureza da pigmentação facial. É que câmeras Kodak são baratas, explica a autoridade, e não precisam ser registradas...

Texto Anterior: Voto é voto
Próximo Texto: Queda de alíquotas desagrada fabricantes de bens de consumo
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.