São Paulo, domingo, 18 de setembro de 1994
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Por uma educação integral e integrada no Brasil

CARLOS VOGT

O fenômeno da repetência está associado às regiões mais pobres do país
A cadeia de educação deve ser inicialmente estabelecida dentro de quatro campos: o campo normativo, o campo processual, o suporte financeiro e, finalmente, o campo da produção de seus insumos.
O campo normativo compreende o vasto e complexo ordenamento jurídico da educação, as relações entre os níveis da hierarquia jurídico-administrativa das competências, especificado pelos preceitos constitucionais no nível federal, pela legislação ordinária nos níveis federal, estadual e municipal, bem como pelas normas específicas aplicáveis aos subsistemas.
O pressuposto é que tal normatividade representa um consenso social relativo à educação, embora tal consenso não seja necessariamente estável e definitivo.
O campo processual representa o que poderíamos chamar de uma arena de decisões, onde se localizam e se desenvolvem os processos decisórios, onde se localizam instituições e se movimentam atores, onde são atualizadas e implementadas as políticas de educação em termos de formas e conteúdos do processo educacional, bem como as decisões sobre seus suportes materiais.
No campo financeiro localizam-se as fontes de suporte, sejam elas de origem fiscal (tributos diversos), sejam contribuições (de usuários ou institucionais) ou mesmo oriundas de fontes parafiscais (como, por exemplo, recursos de loterias etc.).
Finalmente, o campo da produção, que comporta um conjunto de atividades, públicas e privadas, que provêm a demanda material do processo. Materiais, equipamentos, obras civis, recursos humanos (aqui entendidos como um dos "inputs" fundamentais) e serviços de apoio.
A complexa interação entre estes campos revela-se problemática, especialmente quando se tenta aplicar o modelo à realidade brasileira.
O sistema educacional brasileiro, como de resto todo o sistema de proteção social, apresenta algumas características que são grandes obstáculos a qualquer tentativa de integração racional.
A primeira destas características localiza-se no campo normativo. Diz respeito a uma extrema centralização que contrasta e contradiz outra característica, esta no campo processual, que é a grande fragmentação institucional do sistema.
Ainda neste campo, os longos períodos de autoritarismo (pós 1930 e pós 1964), nos quais se deu a estruturação e expansão do atual sistema, reforçaram esta centralização decisória.
O sistema educacional brasileiro revela ainda, no mesmo campo processual, um baixo grau de participação social e política, fazendo com que as demandas sociais encontrem grande dificuldade para que se transformem em pontos da agenda de políticas.
Não se pode negar, por outro lado, que no período pós 1964 uma grande expansão quantitativa foi verificada. A oferta de pré-escola cresceu, de 1973 a 1991, 627%. O primeiro grau, 73%; o segundo, 77%; e o ensino superior, 103%.
Isso significou uma massificação do ensino, sem que, entretanto, os padrões de qualidade fossem mantidos ou potenciados. Em 1991, 38.167.295 pessoas estavam no sistema educacional, distribuídos por instituições públicas (níveis federal, estadual ou municipal) ou privadas.
Para comprovar, no entanto, o baixo patamar de qualidade sistêmica, basta dizer que, segundo o próprio MEC, apenas 13% dos estudantes matriculados na primeira série (em 1979) concluíram a oitava em 1986. Esse dado reflete as altas taxas de repetência e evasão com que deveremos nos defrontar.
Por sua vez, essas taxas estão associadas a fatores amplos de cunho social e econômico, tais como o trabalho precoce, a existência de ambientes familiares adversos ao estudo, a inadequação física da rede escolar etc.
O fenômeno da repetência está associado às regiões mais pobres, onde se acumulam as irracionalidades do sistema. Enquanto as repetências na primeira série atingem 37,4% no Sudeste, chegam a 73,9% no Nordeste rural. Na oitava série, os índices são de 13,6% e 55,8%, respectivamente.
Ainda do ponto de vista qualitativo, podemos apontar um índice de 18% de analfabetismo. Isso significa que 28 milhões de pessoas não sabem ler e escrever.
Entretanto, esse número pode ser maior, uma vez que está também registrado o fenômeno do "alfabetismo funcional", que atingirá cerca de 60 milhões de pessoas, que não estavam aptas para escrever nem sequer um bilhete. Ou seja, não dominam os códigos de integração nas sociedades modernizadas.
O financiamento do sistema tem uma base primordialmente fiscal, seja pela obrigação constitucional de aplicação de 18% (União) e 25% (Estados e municípios) dos orçamentos públicos em educação, seja pelas contribuições do salário-educação. Porém, o controle deste investimento é precário, difuso e com baixo grau de planificação, o que pode ser associado à pobreza dos resultados.
Além do mais, esse investimento revela graves distorções. A União gasta a mesma quantia entre 50% e 60% de seus recursos com o ensino superior (300 mil estudantes). 25% dos recursos são gastos com aposentadorias das universidades. Neste ritmo, em dez anos, todos os recursos do ministério serão gastos com seus aposentados. Alguns tópicos estratégicos devem ser discutidos com vistas a tão desejada integração sistêmica.
Em primeiro lugar, aquele que diz respeito às relações entre o setor público e o setor privado. Neste tópico, a discussão parece estar mal-focalizada.
A polarização entre as opiniões que defendem a educação como responsabilidade do Estado e aquelas que defendem sua privatização tem deixado de lado as possibilidades de um novo patamar de relacionamento, que não significa a supremacia de um dos pólos.
Nas condições brasileiras trata-se, primordialmente, de dar uma utilidade pública aos recursos privados, sem que isto signifique um sacrifício adicional para as atividades produtivas, sem que signifique sobretaxação ou confiscos.
Inclui um novo e moderno patamar de solidariedade social, positiva, não-assistencialista ou caritativa, onde o papel do Estado estaria, também, no estabelecimento de algumas renúncias fiscais.
Outro tópico, que se refere a todos os campos, é a discussão centralização versus descentralização. Exemplos importantes nas políticas sociais brasileiras têm demonstrado a existência de uma área de risco: os processos de descentralização de competências e obrigações, ou seja, estabelecidos nos campos normativo e processual, quando não são estendidos aos outros campos (financeiro e da produção), têm-se revelado verdadeiras pulverizações de esforços e dos poucos recursos alocados.
Tal situação nos coloca diante de um outro tópico que o relativo ao gerenciamento do sistema. O desafio parece estar na transposição do fosso que separa a atual situação de rigidez burocrática da gestão flexível.
Esse movimento representa não apenas um novo tipo de normatização, mas a busca de novas metodologias de gestão, que incluem formas participativas diferentes da convencional, de operacionalização das decisões e a criação de novas metodologias de gestão.
Por fim, colocam-se ainda outras questões de natureza cultural. A demanda social por serviços educacionais não pode ser mais considerada como um pólo passivo sobre o qual se imprimem certas respostas tomadas unilateralmente.
O chamado "público-alvo" deve ser visto, na nova perspectiva, como usuário/cidadão "consumidor" de serviços educacionais que lhe são garantidos pela posse da cidadania, pelo direito de integração na nova cultura que se descortina, resultante de profundas transformações no campo produtivo e do conhecimento.

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