São Paulo, domingo, 18 de setembro de 1994
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Shakespeare foi o inventor do personagem

HAROLD BLOOM
ESPECIAL PARA A FOLHA

Toda personagem literária é uma invenção e invenções geralmente têm uma dívida com outras invenções anteriores. Shakespeare é o inventor do personagem literária como o conhecemos; ele alterou as expectativas humanas de imitação verbal da personalidade e essa reforma parece, agora, se permanente e, de uma forma um tanto misteriosa, inevitável.
Notáveis como são as representações dos personagens em Homero e na Bíblia, esses personagens são relativamente imunes a qualquer mudança. Envelhecem com o passar das histórias, mas seus modos habituais de responder à vida não mudam. Jacó e Aquiles vão se desenvolvendo aos nossos olhos, mas sem qualquer metamorfose.
Já Hamlet e Otelo se alteram da maneira mais drástica e não só por força de suas ações, mas também de suas palavras e especialmente ao se escutarem falando, seja para si mesmos, ou para os outros. Refletindo sobre o que eles mesmos disseram, têm a intuição da mudança e acabam mesmo mudando, às vezes de forma até extravagante, mas sempre persuasiva. Ou então sofrem passivamente uma mudança, em resposta não tanto à sua linguagem quanto à sua relação com ela.
Ao invés de afirmar que Shakespeare imitava com grande sucesso elementos da nossa personalidade, seria mais útil dizer que ele obrigou a vir à tona certos elementos até então velados, ou inacessíveis à representação. Isto não significa que Shakespeare seja igual a Deus, ou que Shakespeare é Deus, mas serve para nos lembrar que a linguagem, em si, também não é.
A imitação da personalidade, como se dá com Shakespeare, é hoje a nossa norma e, na verdade, tornou-se a norma quase imediatamente, como reconhecia, algo a contragosto, o próprio Ben Jonson. E no entanto a representação shakespeareana tem surpreendentemente pouca coisa em comum com a imitação da realidade em Jonson ou Christopher Marlowe.
As fontes primárias da originalidade de Shakespeare na representação de homens e mulheres encontram-se nos "Canterbury Tales" de Chaucer, se é que há mesmo o que se encontrar fora de sua própria obra. O abominável e esplêndido "Pardoner" de Chaucer escuta a si mesmo contando sua história e acaba entusiasticamente encorajando seus companheiros de peregrinação a se aproximarem, para ser chicoteados.
Sua autoconsciência e seu sentido apocalíptico e amargo de uma queda do espírito são como prelúdios para os abismos ainda maiores da perversão da vontade em lago e Edmund. Aquilo que poderia ser definido como o "carisma negativo" talvez seja, então, uma invenção de Chaucer, mas só atinge seu ponto mais alto na representação shakespeareana.
A representação shakespeareana usurpa não apenas nosso sentido de personagem literária, mas nosso sentido de nós mesmos como personagens, sendo Hamlet o responsável pela maior das usurpações. Na medida em que temos alguma idéia de "desinteresse" como qualidade humana, nossa tendência é tomá-la de empréstimo ao Hamlet do ato 5, cuja quietude é de uma autoridade fantasmagórica.
Oscar Wilde, em seu diálogo profundo (e profundamente engraçado), "A Decadência da Mentira", deu voz a uma verdade permanente quando insistiu que a arte molda cada era, muito mais do que cada era molda a arte. A vida imita a arte –nós imitamos Shakespeare, porque sem ele morreríamos, de pura falta de imagens.
Quanto às influência de "Hamlet" sobre todas as épocas, Wilde só fez um comentário: "o mundo ficou triste porque um fantoche sofria de melancolia". "Fantoche" é a desconstrução de Wilde, um lembrete brilhante de que o artesanato das ilusões em Shakespeare dominou de tal forma a realidade que chegou mesmo a alterá-la, evidentemente para sempre.
A análise das personagens, como tarefa da crítica, não é menos uma invenção de Shakespeare do que o próprio personagem literário, uma vez que grande parte do que sabemos sobre como analisar personagens segue necessariamente procedimentos shakespeareanos. Seus vilões-heróis, de Ricardo 3º a Iago, Edmund e Macbeth, são aventureiros astutos e incansáveis na busca de suas próprias motivações. Se nos fosse possível ou tolerável ver Hamlet como outro vilão-herói, acabaríamos por considerá-lo como o analista supremo das recalcitrâncias mais obscuras da identidade.
Freud seguiu nos passos do sábio pré-socrático Empédocles, ao argumentar que personalidade é destino, uma doutrina amedrontadora, segundo a qual não existem acidentes e toda nossa vida é regida pela sobre determinação. Hamlet parte do mesmo pressuposto, mas soma a isto a passividade terrível demonstrada por ele no ato 5.
No curso das tragédias shakespeareanas, as personagens mais interessantes parecem ávidas de destruição, o que serve para nos lembrar, mais uma vez, que uma leitura shakespeareana de Freud seria bem mais esclarecedora do que uma exegese freudiana de Shakespeare. Aprende-se mais quando se lê "Hamlet" à luz de "Para Além do Princípio do Prazer".
É nas comédias de Shakespeare que a personagem alcança sua verdadeira apoteose literária, na representação daquela liberdade interior que só o grande humor, ou "wit" é capaz de criar. Rosalind e Falstaff, e talvez, só esses dois, entre todas as personagens de Shakespeare, rivalizam em humor com Hamlet, embora não sejam páreo para as explorações da metafísica da consciência.
Seja no modo cômico ou no moderno, Shakespeare estabelece os padrões de medida para o equilíbrio entre as paixões e a personalidade.

Tradução de ARTHUR NESTROVSKI

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