São Paulo, domingo, 18 de setembro de 1994
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Entrevista com o bardo

ARTHUR NESTROVSKI ; MANUEL DA COSTA PINTO
ESPECIAL PARA A FOLHA

MANUEL DA COSTA PINTO
O maior poeta da língua inglesa é sabidamente arredio. Jamais aceitou colaborar com seus biógrafos e muito menos conceder entrevistas. Há quem diga que ele nunca existiu. Para o poeta John Milton, ele existe em seus livros –e isto é o bastante.
Quebrando mais de 370 anos de silêncio, o dramaturgo concedeu com exclusividade à Folha a entrevista abaixo, onde fala de sua formação, do cinema, do Brasil, da nudez do príncipe Charles e da Inglaterra de hoje.
William Shakespeare –Ser ou não ser, esta é a questão. Eu não sou o que sou. Eu tenho a mente de um homem e a força de uma mulher. E é isto, simplesmente, o que me sustenta a vida.
Folha –A culpa pela confusão talvez seja do seu velho amigo (e rival) Ben Jonson. Foi ele quem disse que o senhor não tinha estudo. Daí imaginarem um outro Shakespeare, mais letrado.
Shakespeare –Não vejo lá tanto proveito nos que passam a vida estudando; a não ser a autoridade que eles se arvoram à custa dos livros dos outros. Quem sabe o nome certo para cada estrela não ganha mais com isto do que os que vão passear à luz da lua, sem ciência e sem nome.
Folha –Falando ainda de sua vida pessoal, o senhor casou muito cedo, aos 18 anos.
Shakespeare –Um homem jovem que se casa é um homem estragado.
Folha –Isso é uma queixa de sua mulher?
Shakespeare –Ela é uma mulher muito honesta, mas com uma certa queda para a mentira. Eu sei que a mulher é um prato dos deuses –desde que não seja preparada pelo diabo...
Folha –Mas, segundo um pároco de Stratford-upon-Avon, era o senhor quem saía dos trilhos, entregando-se a bebedeiras com Ben Jonson.
Shakespeare –Que a perniciosa alma dele apodreça –devagar e sempre! Eu o amaldiçôo.
Folha –Por que o senhor escreve?
Shakespeare –O dia em que eu percebesse algum bom senso nos homens, poderia muito bem quebrar minha pena e enterrá-la, junto com todos os meus livros.
Folha –Quer dizer que o senhor continua sendo um crítico da irracionalidade humana?
Shakespeare –A coisa mais presunçosa do mundo é que, quando sofremos pelos nossos próprios excessos, colocamos a culpa no sol, na lua e nas estrelas, como se fôssemos vilões por necessidade, tolos por ordem celeste, velhacos, ladrões, traidores, bêbados, mentirosos e adúlteros por obediência à influência dos planetas.
Folha –Como o senhor sabe, muitas das suas peças viraram filmes...
Shakespeare –Isto sempre foi assim no meu país: quando eles têm alguma coisa de bom, imediatamente vulgarizam.
Folha –Outras tantas foram musicadas. O senhor tem a mesma opinião?
Shakespeare –Quem não gosta de música, quem não tem música dentro de si, nem se comove com as belas harmonias, já é um candidato à politicagem, ao mau-caratismo, à exploração alheia. A música é o alimento do amor; quanto mais música, melhor.
Folha –Suas peças têm sido muito encenadas no Brasil. Que idéia o senhor faz do país?
Shakespeare –Ah, um admirável mundo novo. Cheio de gente bonita. Tem algo de destrambelhado, mas à sua maneira funciona.
Folha –No Brasil, como no mundo inteiro, suas peças são sempre montadas em tradução. Que relação o senhor tem com os tradutores?
Shakespeare –Eles se convidam para a grande festa das línguas e catam as sobras. É uma gente que vive mendigando palavras.
Folha –No seu país, faz muito tempo que o teatro foi substituído pelo rock como produto cultural de exportação.
Shakespeare –A ilha está cheia de ruídos. Às vezes eu sinto como se um milhão de instrumentos estridentes não parassem nunca de zumbir. Muito barulho por nada.
Folha –Ainda falando dos dias de hoje, o senhor acompanhou o escândalo do príncipe Charles, fotografado sem roupas?
Shakespeare –Pelado ali, para todos os efeitos, parecia um rabanete, com uma cabeça fantasticamente esculpida a canivete.
Folha –Como o senhor sabe, durante o governo Thatcher, as obras de reconstrução do Globe foram interrompidas...
Shakespeare –Quer dizer que é assim que andam as coisas? Este é o governo hoje nas ilhas britânicas? É esta a realeza de Albion?
Folha –Não, não. Thatcher não é mais a primeira-ministra. Os conservadores continuam no governo, mas...
Shakespeare –Esta ilha coroada, trono de reis, um quase paraíso, uma terra de tantas grandes almas, com uma reputação universal: vendida! Governada pela bolsa de valores! Um país que já controlou o mundo tornou-se incapaz de controlar a si mesmo!
Folha –...mas as obras foram retomadas. O teatro fica pronto em 1996.
Shakespeare –Eu já prestei serviços ao governo, e eles sabem. Estamos quites. É melhor ter esses homens como amigos do que como inimigos.
Folha –Como o senhor se define hoje, depois de tantos anos de silêncio?
Shakespeare –Eu sou um velho muito tolo e sentimental; e, para falar francamente, temo não estar em meu perfeito juízo.
As respostas de Shakespeare foram extraídas de suas obras na seguinte ordem: (Resposta 1) "Hamlet", ato 3, cena 1, linha 56; "Otelo", 1.1.65; "Júlio César", 2.4.6; "Tudo Está Bem Quando Bem Termina", 4.3.333; (2) "As Penas de Amor Perdidas", 1.1.84; (3) "Tudo Está Bem Quando Bem Termina", 2.3.315; (4) "Antônio e Cleópatra", 5.2.251 e 274; (5) "Otelo", 2.1.153; "Júlio César", 4.1.6; (6) "A Tempestade" 5.1.51; (7) "Rei Lear", 1.2.132; (8) "Henrique 4º", parte 2, 1.2.244; (9) "O Mercador de Veneza" 5.1.79; "Noite de Reis" 1.1.1; (10) "A Tempestade" 5.1.183; "Hamlet" 2.2.211; (11) "As Penas de Amor Perdidas" 5.1.39; (12) "A Tempestade" 3.2.135; "Muito Barulho por Nada"; (13) "Henrique 4º", parte 2, 3.2.335; (14) "Henrique 6º", parte 2, 1.3.46; (15) "Ricardo 2º", 2.1.40; (16) "Otelo" 5.2.338; "Júlio César", 5.4.28; (17) "Rei Lear", 4.7.60

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