São Paulo, domingo, 18 de setembro de 1994
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Comédias sombrias

BARBARA HELIODORA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Até a definição de "pior" é difícil: "Ricardo 3º", por exemplo, já foi com frequência chamada de ruim, formal, rígida e presa a formas medievais; mas com o tempo suas qualidades foram reconhecidas até pelos teóricos, e sempre foi imbatível em popularidade.
"Romeu e Julieta" ou "Sonho de Uma Noite de Verão" permitem que, no Brasil, muita gente se esqueça de que "a tarefa de Shakespeare foi a de versificar a vida", e todos nós sabemos que nem tudo na vida é lírico ou romântico. Retratos de tal consciência são três peças que Shakespeare escreveu nos primeiríssimos anos do séc. 16, e todas têm enfrentado problemas críticos e de popularidade, embora tanto uns quanto outros venham diminuindo a cada dia –talvez porque cada vez mais aceitamos o fato de toda vida humana ser complexa e também o fato de o teatro, cumprindo seu destino de retratar e examinar comportamentos humanos, nem sempre ter de ser alegre ou feliz.
Os românticos sonham com ligações entre a obra de Shakespeare e acontecimentos de sua vida, e tal tipo de raciocínio já foi aplicado à criação de "Bom é o que Bem Acaba", "Troilus e Cressida" e "Medida por Medida", todas escritas durante o período trágico da obra do autor.
Não sendo possível encontrar fatos trágicos na vida de Shakespeare na mesma época (a morte do filho ocorrera em 1596), parece mais lógico aceitarmos que ao fim de 12 ou 14 anos de carreira, e a partir de seu 37º ano de vida, William Shakespeare houvesse alcançado uma plena maturidade pessoal e artística que lhe permitiu enveredar pela forma trágica e também, tendo ele a cabeça que tinha, refletir sobre aspectos sombrios da existência humana que a empanam e a tornam por vezes infeliz e até mesmo repugnante, mas por causas mesquinhas, menores, e por isso mesmo não-trágicas.
A conjunto formado por "Bom é o que Bem Acaba", "Troilus e Cressida" e "Medida por Medida" têm sido dados vários nomes: "comédias sombrias", "comédias problemáticas", "peças problemáticas", nenhum muito satisfatório, e minha opção pelo primeiro pode ser mera simpatia, pois não sendo trágica "Troilus e Cressida" dificilmente pode ser realmente chamada de comédia. Sem dúvida as três são sombrias, pois tratam de graves problemas éticos, alguns ainda presentes entre nós, outros mais presos à época da composição e menos persuasivos hoje em dia.
"Bom é o que Bem Acaba" (c. 1599 a 1602) recorre a uma situação de conto de fadas no estabelecimento inicial da situação: Helena de Narbon, órfã de famoso médico, cura com misteriosa receita do pai o condenado rei da França, e quando este, como recompensa, lhe garante que dará a ela "o que quiser", Helena pede para casar-se com o conde Bertram. Este fica revoltado, por achá-la sua inferior por nascimento, e influenciado pelo amigo Parolles logo após a cerimônia parte para a guerra, afirmando que Helena só será sua esposa quando realizar o impossível: ficar com o anel que ele usa no dedo e apresentar-se grávida de um filho seu.
Com base em outro conto de fadas, Shakespeare usa o truque da troca da moça na cama: Helena "salva a honra" de Diana, que Bertram queria conquistar, e afinal conquista por sua dedicação o marido. A peça cobre um processo de amadurecimento interessante no caso de Bertram: por um lado ele acaba descobrindo as virtudes de Helena, por outro é levado a descobrir a calhordice de Parolles, a quem sempre aceitou apenas porque este o divertia. A discussão sobre nobreza de sangue e nobreza de caráter torna o jogo interessante, e no palco a peça tem um encanto considerável, quando trilha o fio da navalha entre os problemas morais e o conto de fadas.
"Troilus e Cressida" (c. 1602), obra memorável, contesta obras como "Henrique 5º" e "Romeu e Julieta": enquanto o rei inglês se preocupa com a correção de seu direito à coroa da França antes de "soltar os cães da guerra", Shakespeare aqui cria arrasador retrato de uma guerra motivada pelo rapto de Helena de Tróia.
Com o adultério como causa, e ao fim de sete anos de mortes inúteis, a corrupção é a dominante e sequer os mais consagrados heróis homéricos escapam à contaminação dessa guerra onde nenhum personagem ostenta a qualidade que para Shakespeare é fundamental em governantes ou poderosos, a preocupação com o bem-estar dos que deles dependem. A história de amor que é o foco da ação lembra com ironia }Romeu e Julieta: Cressida é grega, Troilus troiano; apaixonados, têm como mediador não um Frei Lourenço que os case, mas Pandarus, que aconselha Cressida a buscar na cama de Troilus sua melhor proteção para viver em Tróia.
Em uma troca de prisioneiros ela é devolvida aos gregos e, após tanto relutar em entregar-se a Troilus, imediatamente o trai com o grego Diomede. Vinha de séculos a imagem de Cressida como símbolo de traição, mas vale notar que sendo Troilus solteiro e Cressida viúva, ele não levanta um dedo para retê-la em Tróia no momento da troca.
Por outro lado, nada impediria Cressida de pensar em voltar para Troilus em alguma fase pós-Diomede, já que todos discutem com muita naturalidade a possível de devolução de Helena a Menelaus... Como quadro de decadência e corrupção a peça é irretocável: ao fim de dois meses de corrupção a Dinamarca precisou do sacrifício de um Hamlet para repor o governo nos eixos, mas ao fim de anos de uma guerra gratuita não há mais nem Hamlets e nem mais nada que mereça ser salvo.
Em "Medida por Medida" (c. 1603) Shakespeare deixa bem claro que desconfia dos puritanos: o duque de Viena, julgando ter sido leniente demais no governo, afasta-se do cargo e deixa temporariamente no governo Angelo, o mais inflexível dos puritanos, preocupado em cumprir a letra da lei sem qualquer concessão à misericórdia.
Repentinamente dominado pelo desejo, Angelo diz a Isabella, cujo irmão ele condenara à morte por haver engravidado a noiva, que perdoará o condenado se ela for para a cama com ele. Pior, ordena a execução depois de considerar concretizada sua conquista. Novamente recorrendo ao truque da troca na cama, Shakespeare elabora uma série de soluções e punições que levam atos a suas conclusões lógicas, "medida por medida": não se trata de um final feliz superficial mas, como no caso de "O Mercador de Veneza" e tantas outras de suas obras, de justiça e misericórdia.
Em todas essas peças o que se busca não são soluções fáceis, mas tão somente o reconhecimento de que, como nas tragédias, o mal existe na vida: às vezes, porém, ele aparece em doses menos radicais e mais controláveis –a não ser no caso de Troilus, onde aparece algo que Shakespeare jamais perdoa: o mau governo. Nenhuma dessas três peças é indicada para um mero entretenimento, mas todas três recompensam com generosidade os que buscam no teatro compreender melhor seus semelhantes.

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