São Paulo, domingo, 18 de setembro de 1994
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O pesadelo conjugal de Macbeth

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA FOLHA

Em seu "General Macbeth" (1962), um dos ensaios mais exuberantemente equivocados sobre a peça, Mary McCarthy descreve Macbeth como "um homem sem consciência", preocupado apenas com "dormir outra boa noite de sono" e sem demonstrar nenhum sentimento, "exceto a inveja, à maneira típica da classe média". Mesmo assim, ou por isto mesmo, concede que, "de todas as personagens shakespereanas, Macbeth nos parece o mais atual, o único que nós poderíamos muito bem imaginar vestindo um uniformemilitar moderno, ou calças de brim e uma camisa esporte."
A 180 graus de distância, Harold Goddard, em "The Meaning of Shakespeare" (1951), descreve a peça como "um marco na exploração humana da profundeza das coisas", comparável a "Crime e Castigo", de Dostoiévski: uma e outra são "estudos do mal" e cada uma representa, no cânone de seu autor, a "mais rápida, concentrada, aterradora e sublime" obra de arte. Mas a conclusão de Goddard é virtualmente a mesma: "poucas peças de Shakespeare falam tão diretamente ao nosso tempo."
Faz três séculos e meio que "Macbeth" fala diretamente a cada época e o exemplo acima –um entre mitos– serve, por si só, para contestar a escolha de alguma era específica como destinatária privilegiada da peça. Se é verdade que Shakespeare e a nossa cultura se confundem, então é compreensível que cada nova geração vá descobrir nas peças uma resposta para suas próprias indagações. Cada leitura das peças acaba sendo uma nova forma da cultura se definir a si mesma.
Nesses últimos anos, nossa cultura vem se definindo das formas mais variadas, face a face com Macbeth. Partindo, por exemplo, de um estudo comparativo dos "mistérios dramáticos" medievais e da maneira como esses modelos são alterados e parodiados por Shakespeare, Howard Felperin define a modernidade de Macbeth em termos de uma contínua reinvenção de si mesmo ("Shakespearean Representation", 1977). Todos os papéis, toda a tipologia imposta sobre ele, num duplo sentido, social e literário, será posta em questão por um Macbeth que não aceita mais conformar-se à peça dos outros.
Levando esta mesma idéia às últimas consequências, mas num outro contexto, mais próximo da tradição gnóstica do que dos ensaios de Paul de Man sobre a modernidade, Harold Bloom (num ensaio publicado na Folha, há dois anos) examina o progressivo esvaziamento da interioridade de Macbeth, inversamente, o caminho dessa imaginação para além de todos os limites.
Macbeth nos ensina a impossibilidade de ganhar acesso à interioridade dos outros. Mais do que um poeta, ou dramaturgo, Macbeth é um ator, ou diretor, obcecado com o tempo e procurando, a despeito de tudo, preservar a ilusão –a ilusão de que significados e atos, as palavras e as coisas, de alguma maneira, se correspondem.
Alguns leitores podem estranhar leituras como essas e se perguntar até que ponto as palavras acima correspondem àqueles cinco atos. Onde estarão as brumas e as bruxas, onde está o cruzamento entre o natural e o sobrenatural, onde está todo o sangue, toda a violência, todo o terror da peça noturna de Shakespeare? Bem mais próximo do que se imagina, segundo Stanley Cavell.
Num ensaio extraordinário, publicado na revista "Raritan" (12/3) em 1993, Cavell transfere a carga integral da tragédia para aquela que, no nosso tempo talvez mais do que em outros, é uma pergunta central: o que é um casamento? Que espécie de casamento é este? O que é, na verdade, este casamento entre Macbeth e Lady Macbeth?
Prisioneiros da imaginação um do outro, vítimas de uma forma de vampirismo espiritual, Macbeth e Lady Macbeth são menos interlocutores do que companheiros de silêncio, de um entendimento silencioso sobre três assuntos: o plano para assassinar o rei, a falta de filhos e a relação entre Macbeth e as bruxas. Dos três, o segundo é, talvez, o mais importante o mais difícil de compreender. A peça inteira se equilibra em torno a palavras para "nascimento": criar, dar à luz, chocar, nascer, cultivar, etc. E, no entanto, que fim levou, o que foi ou não foi essa criança a quem Lady Macbeth "amamentou", essa criança que está presente constantemente como um fantasma nas falas do casal?
E o que dizer da primeira cena de Lady Macbeth, ao ler a carta do marido, que volta das guerras, e conclamar os espíritos do pensamento humano para "dessexuá-la"? Já é quase um lugar-comum da crítica interpretar a cena como alguma forma de ritual, aproximando Lady Macbeth das bruxas, fazendo dela uma bruxa, ou melhor, esfumaçando as divisas entre o humano e o sobre-humano, e o humano e o monstruoso. Onde acaba e onde começa o humano? Qual é o limite para que se ponha ou não alguém na fogueira? –questão que vai além da metafísica numa época em que o julgamento de bruxas era um fato cotidiano. O que é, afinal, uma mulher e o que é um homem, neste mundo onde "tudo é o que não é?"
Macbeth fará "tudo o que cabe a um homem", mas perdido entre profecias e augúrios, entre desejos e seduções, não lhe é fácil dizer o que não cabe. Macbeth e Lady Macbeth jogam continuamente com o projetar, cada um na consciência do outro, daquilo que, de fato, é seu. Matar um rei pode ser, também, desferir um golpe sobre a mulher. Nestas circunstâncias, torna-se cada vez mais difícil saber o que se está fazendo e o que está sendo feito consigo. O emblema maior desta condição, entre fazer e se deixar ser feito, é o sonambulismo de Lady Macbeth, mas é possível reforçar certos temas e acrescentar outras perguntas às de Cavell.
A extinção da interioridade de Macbeth corresponde a uma incapacidade de conjugar, prosaicamente, o que é interno ao que é externo. Mas não é este, também, o desafio do dramaturgo? Não existe, para ele, um plano "profundo" da interioridade, inacessível à representação? E como representar, em 1606, o que nunca foi representado antes? –"um ato sem nome", como dizem as bruxas. Como revelar o que é irrepresentável, senão pelo seu velamento; e não é isto o silêncio dos culpados, o silêncio do casal Macbeth?
Entre os encantamentos e feitiçarias –que nós não precisamos mais interpretar magicamente, como coisa de bruxas–, entre as seduções e subjeções, em ambos os sentidos, o de submeter e o de ser submetido, entre fazer alguma coisa e deixar que se faça alguma coisa consigo, onde acaba a formação de cada um de nós? Entre tiranos e bruxas, o que há, afinal, de definitivo sobre "ser" masculino ou feminino? O que "é" um gênero? Existe uma forma masculina do conhecimento?
Para procurar uma resposta a essas perguntas seria preciso compreender, também, aquela tendência de interpretar magicamente o mundo, que define o horizonte de Macbeth em suas duplicidades. Um evento só acontece, dizia Emerson, quando se deixa que aconteça: vale dizer, quando a negação se cala e o evento é visto não-magicamente.
Perpetuamente contemporânea, falando de nós mais do que nós dela, "Macbeth" nos confronta com a possibilidade, ou terror permanente, de que o modelo deste casal seja, de fato, o modelo de pacto silencioso, ou condição natural do casamento. Talvez o esforço do nosso tempo, uma das formas de ler Shakespeare, não seja outra coisa senão a tentativa de chegar lá, naquele "amanhã" perpetuamente adiado, o "tempo livre" onde palavras e coisas se tocam e o conhecimento e o casamento não sejam mais uma questão de magia, ou de sonambulismo.

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