São Paulo, domingo, 18 de setembro de 1994
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O golpe de Hamlet e a tragédia do Estado

A tragédia shakespeareana tem um profundo sentido político

GERALDO DE CARVALHO SILOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Hamlet" começa na escuridão da noite, numa plataforma de canhões e com soldados nervosos. Aguardam, com medo, ataque de tropas estrangeiras ou o reaparecimento do espectro do rei Hamlet, já visto duas vezes antes, e que logo surge "numa armadura", como se estivesse pronto para entrar em luta.
Horácio, estudante na Universidade de Wittenberg e cético quanto a almas do outro mundo, pensa que a "coisa" não passa de "alucinação". Logo depois, parece mudar de idéia: acha que "ele" –o Fantasma, chamado pelo pronome neutro "it"– pressagia "estranha erupção" (no sentido também de "doença") para o "nosso Estado" (o governo da Dinamarca). Horácio considera o aparecimento do espectro como advertência aos dinamarqueses e conta aos soldados que o príncipe Fortinbrás ameaça invadir o país a fim de recuperar as terras perdidas por seu pai no duelo em que o rei Hamlet havia morto o soberano da Noruega (a fonte do conflito político: a batalha à espada entre os dois antigos soberanos).
Reunida a corte, o novo chefe de Estado, Claudius, confirma Horácio ao comunicar ao conselho de nobres que o príncipe Fortinbrás "não cessa de molestar-nos com contínuas mensagens cuja substância é a devolução das terras perdidas por seu pai..." (1.2.21-5).
Claudius nomeia dois embaixadores, Cornélio e Voltemand, para negociar com o rei da Noruega. Diplomaticamente resolve a contenda: Fortinbrás invadirá a Polônia (sempre a Polônia!) e não a Dinamarca, mas pede licença para que as suas tropas atravessem o território dinamarquês. Claudius concorda: realpolitik.
Na parte introdutória da fala do trono –sinuosa e cínica–, Claudius acentua que, ao aceitar a eleição para o trono e casar-se com Gertrude (na época, crime de incesto, pois ela era viúva de seu irmão, o rei Hamlet) havia seguido os conselhos e recebido o apoio de toda a nobreza, ali reunida. Claudius, assassino do próprio irmão, obviamente manipulara a eleição: fez-se eleger às pressas para o trono, alegando razões políticas –ameaça de invasão estrangeira. Claudius jogou com o oportunismo do colégio eleitoral, com a cumplicidade de Polonius –o velhaco e astucioso primeiro-ministro– e, no mínimo, com a complacência de Gertrude que nada fez para impedir o esbulho da expectativa de direito de Hamlet. De maneira formal, a eleição foi correta; no fundo, representou golpe de Estado.
Na rubrica de abertura da cena, no Quadro 2, a ordem de precedência de Hamlet –príncipe da Dinamarca e "primaz da corte"– está errada: passa depois dos conselheiros, de Polonius e de Laertes, filho do anterior. Qualquer ruptura propositada de cerimonial tem intento político. Como Shakespeare não brinca em serviço, convém investigar o motivo da falha protocolar: o escritor, já na rubrica, ressalta a oposição de Hamlet ao regime que se instaurara.
O príncipe entra em cena a contragosto e cede a outros, num protesto, a prioridade que lhe cabe. E coloca-se num canto do salão, vestido de negro, de luto fechado. A roupa "preta como tinta preta" de Hamlet constitui o primeiro ataque ao rei. Gertrude, alegríssima, apresenta-se (indica-o Bevington) em roupagem faustosa, assim como o novo soberano e todos os cortesãos. (No teatro elizabetano o traje dos personagens compunha o cenário).
Chocado pela postura absurda do enteado, Claudius a ele se dirige com cautela, chamando-lhe primeiro, "meu parente Hamlet" e, depois, "meu filho" (1.2.66-7). Hamlet, à parte (só ouvido, portanto, pela platéia) retruca com a aliteração famosa: "Duplamente afins e sem a menor afinidade!" (1.2.67): recusa-se a reconhecer Claudius como soberano e padrasto e considera-o um canalha. Claudius, diante da profunda tristeza de Hamlet, pergunta-lhe: "Como é que nuvens ainda escurecem o vosso rosto? Hamlet responde-lhe: "Não é assim, meu senhor. Estou penando demais ao sol." (1.2.69).
O que significa, aí, "penar ao sol"? Sofrer por ter perdido o pai, a mãe (vivia em concubinato e em incesto com "o monstro sexual") e o trono. Todo o contexto (di-lo H. Kitto) é de "mágoa pessoal e de desolação". Trata-se de referência ao provérbio: "Sem a benção divina e exposto ao calor do sol", lembra o dr. Jonson. Claudius, numa manobra política, procura cativar Hamlet e reforça o apoio político: "Vós, o primaz da corte, filho adotivo e herdeiro".
Na Dinamarca, elegia-se o rei num colégio eleitoral formado pelos nobres, mas o voto do soberano em exercício tinha poder decisório e, em geral, a escolha recaía no príncipe primogênito. Além de proclamar o voto para Hamlet, assegurando-lhe a sucessão no trono, Claudius toma outra providência: proíbe-o de regressar à Universidade de Wittenberg, na Alemanha, de onde poderia passar à Noruega, ou a outro país, e regressar à Dinamarca à frente de tropas, a fim de expulsar Claudius e eleger-se rei. Temendo atrito, Gertrude interfere, pedindo ao filho que continue na Dinamarca. Hamlet, que tinha "intuição profética" remoendo-o por dentro, concorda com o soberano. Ressalva, porém, que faria o possível em obediência à sua mãe somente.
Logo depois, no mesmo ato, Horácio e Marcelo narram a Hamlet o aparecimento do espectro do defunto rei. O espectro aparece e chama Hamlet para "lugar mais remoto" (1.4.62). Sozinho com Hamlet, o espírito do rei conta-lhe que Claudius o havia traído com Gertrude e o havia assassinado. Hamlet encerra o ato com a frase-chave da peça (o primeiro a notá-lo foi Goethe): "Os tempos de hoje estão pervertidos. Oh! Maldição! Que eu tenha nascido um dia para restaurar a ordem!" (1.5.99-200).
O que significa, para Hamlet, "restaurar a ordem"? Obviamente eliminar Claudius ("assassino e usurpador", como disse logo o dr. Jonson) e limpar a coroa! "Há algo de podre no governo da Dinamarca", já havia assinalado Marcelo (1.4.96). A tarefa de Hamlet: restaurar a dignidade do Estado e acabar com a violência e a corrupção.
Hamlet jurara vingar o assassinato de seu pai: matar Claudius (legítimo, segundo as regras do código de vingança) e eleger-se novo rei (legítimo, de acordo com o processo eleitoral dinamarquês). O grosso da platéia elizabetana aprovava a vingança pessoal, o que parecia não coincidir com o sentimento de Hamlet.
Entretanto, Gentillet (que exerceu tanta influência na Inglaterra através do seu "Discurso contra Nicholas Machiavel") sustentou que quem não vingasse o assassinato do próprio pai perdia o direito à herança. Nesse caso, a vingança constituía um "dread command" (comando solene ou sagrado). Descobrindo que era filho de pai assassinado, Hamlet aceita a missão de desforra, embora sentisse –sem dizê-lo– que o papel de "instrumento da punição e o agente da justiça divina" (3.4.185) não se adequava à sua concepção da vida. Hamlet, como Horácio, estudava num centro revolucionário: a Universidade de Wittenberg –fonte das novas idéias que abalavam a Europa.
Segundo Calvino, contudo, os súditos deviam rebelar-se contra "o poder usurpador que oprime a consciência". O teólogo escocês John Knowx aprovou explicitamente a rebelião contra soberanos católicos. George Buchanan, no "De Jure Regni apud Scotos", não só justificou o tiranicídio, como afirmou que "um rei só merece a fidelidade do povo enquanto cumpre o seu dever". E Santo Tomás já havia dito: "O homem é obrigado a obedecer a governante secular até o ponto em que a ordem da justiça o requer. Portanto, se (o governante) não tem título justo, e sim usurpado, ou se ordena o que é injusto, os seus súditos não estão obrigados a obedecê-lo".
Sendo o crime de Claudius secreto e a sua eleição formalmente correta, Hamlet não podia invocar o dever de rebelião e tinha que agir segundo o código de vingança pessoal. E para justificar a rebelião, Hamlet deveria provar, diante da corte e do povo, que Claudius assassinara o seu pai e usurpara o trono. A Bíblia condenava a vingança pessoal e o trono não só a proscrevera como reafirmara o direito divino dos reis. Bernard Shaw considera Hamlet moralmente muito avançado para aceitar as idéias feudais legitimadoras da vingança. Além dessas complicações éticas e religiosas, Hamlet não podia fugir de dúvida terrível: a palavra do Fantasma seria verdadeira?
Até Platão acreditou em espíritos e, segundo a pneumatologia da época, o demônio costumava aparecer, disfarçado com forma física de ente querido, para ludibriar os vivos e forçá-los a cometer atos que os condenariam ao inferno. Ocorre a Hamlet, então, a idéia de montar um detector da verdade –levar na corte, na presença de Claudius, "O Assassinato de Gonzaga", em que se representava a cena seguinte: o Duque de Viena mata o próprio irmão, derramando-lhe veneno na orelha, usurpa o trono e "vira amante" (3.2.297) da antiga cunhada.
Se Claudius, ao ouvir a peça, "se tornar branco de medo" (2.2.631), ficaria provado que a acusação do Fantasma era exata. Acontece o que Hamlet previra: na cena do envenenamento, Claudius levanta-se, pede tochas para alumiar o caminho e abruptamente se retira da sala. Hamlet fica sabendo que Claudius é o assassino e Claudius fica sabendo que Hamlet o sabe. Começa a luta entre os dois "grandes antagonistas" (5.2.70-71).
Desconfiado, Claudius passa a dizer, ao contrário do que asseverava no princípio, que Hamlet não estava mentalmente desequilibrado, e, sim, louco de pedra. Resolve exilá-lo na Inglaterra, na aparência designando-o embaixador extraordinário para negociar o pagamento de tributos atrasados (o que não era verdade). Nomeia Rosencrantz e Guildenstern assessores da missão especial e manda carta ao rei inglês, ordenando-lhe que matasse Hamlet imediatamente, "sem mesmo esperar que se afiasse o machado" (5.2.27-8).
Hamlet, apesar da prova obtida com a peça, continua hesitando. Encontra o rei ajoelhado, rezando, e puxa a espada, pronto para matá-lo. E aí, contudo, faz a reflexão seguinte: se for morto enquanto reza, pedindo perdão a Deus, Claudius irá para o céu e o que eu desejo é mandá-lo para o inferno. Põe a espada de volta na bainha. (A cena horrorizou o dr. Jonson). Hamlet enganou-se: o rei não conseguira arrepender-se, pois ele próprio confessa: "Minhas palavras voam para o céu, minhas intenções nunca chegam ao céu" (3.3.97-8).
Gertrude convocara Hamlet para conversar com ela (não no quarto de dormir em que Freud e Ernst Jones colocam a cena, mas numa saleta particular –o significado verdadeiro de "closet"). E, lá, Hamlet percebe alguém detrás da cortina. Pensa que é o rei, escondido. Dá um golpe com a espada e, por engano, mata Polonius, o intrigante primeiro-ministro.
Chega-se ao "turning point" da tragédia: Claudius, como rei, só poderia tomar uma providência: submeter Hamlet a "julgamento por assassinato e traição" (4.7.8), como assevera Laertes. Claudius pondera-lhe que não pôde fazê-lo por duas razões: a afeição de Gertrude por Hamlet e "o grande amor que a raça comum do povo tem por ele" (4.7.19-20). O julgamento e execução de Hamlet na Dinamarca provocaria revolução, ao passo que Claudius poderia apresentar ao povo o assassinato de Hamlet na Inglaterra como traição do soberano inglês.
Na viagem para a Inglaterra, Hamlet dribla Rosencrantz-Guildenstern e apodera-se da carta de Claudius ao soberano inglês: lê que seria executado ao pisar em Londres. Milagrosamente, piratas abordaram o barco em que Hamlet viajava. Os "bons ladrões" reconhecem o príncipe e o desembarcam, ileso, de volta à Dinamarca.
Laertes, que se encontra Paris, ao saber da morte de seu pai, Polonius, regressa secretamente à Dinamarca, e, pensando que Claudius era o responsável, invade o palácio e quase mata o Rei.
Imperturbável, e com extraordinária habilidade, Claudius domina o rebelde, apoiado pela "ralé" e combina com ele estratagema para assassinar Hamlet. O plano não dá certo. Hamlet, por fim, executa o comando do Espectro, matando Claudius e cassando-lhe o título de rei.
Pouco antes de morrer, Hamlet ordena a Horácio: "... relata imediatamente o que aconteceu comigo e com o meu movimento aos que estão em dúvida sobre a minha conduta". E acrescenta: "Vejo antecipadamente que a eleição para rei da Dinamarca por felicidade recairá em Fortinbrás. Como o último desejo, dou-lhe o meu voto". (5.2.406-8).
Fortinbrás, de regresso vitorioso da Polônia, reentra em cena e, diante do "espetáculo" –"o monte de mortos"–, proclama a sua candidatura ao trono.
A grande e trágica ironia da peça: quem assume o poder para "restaurar a ordem" é o outro príncipe, o estrangeiro, o duro, prático e terra-a-terra Fortinbrás que ameaçara invadir a Dinamarca e cuja sombra se projeta, simbolicamente, sobre toda a narrativa. No seu tosco realismo, Fortinbrás reconhece a grandeza de Hamlet como soldado e o seu papel político.
Nada mais nítido do que o sentido político da tragédia, que vem, aliás, da narrativa original. Na "Gesta Danorum", de Saxo Grammaticus, Amleth mata o tirano Feng (Claudius) e anuncia ao povo a libertação do país do "jugo do opressor" e da "escravidão".
Lu Gu-Sun, professor na Universidade de Shangai, refere-se ao interesse dos intelectuais chineses, no começo do século, pelo "incendiário protesto contra a injustiça e a corrupção" contido na peça. Durante a "revolução cultural", contudo, as autoridades proibiram-lhe a representação: obra subversiva. Num país do Leste europeu, houve baderna policial quando os espectadores repetiram, aos brados: "Há algo de podre no governo da Dinamarca". Para os marxistas ortodoxos, "Hamlet" reflete a revolta do homem do Renascimento contra a herança da Idade Média. O grande cineasta soviético Grigori Kozintsev resume o pensamento: "Hamlet é o toque de alarme que acorda a consciência". Marxistas dissidentes, como Jan Kott, enxergam no príncipe de Elsinore o símbolo do líder que há de vir: "Hamlet finge de louco e, friamente, coloca a máscara de loucura para dar um golpe de Estado".

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