São Paulo, domingo, 18 de setembro de 1994
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Zé Celso põe Hamlet no Carandiru

DA REPORTAGEM LOCAL

Se na comédia Cacá Rosset radicaliza as possibilidades do texto shakespeareano, José Celso Martinez Correa consegue ir ainda mais longe na tragédia. Seu }Ham-let é um festim antropofágico, de quatro horas e meia de duração, que amplia e deglute o drama do príncipe dinamarquês. Hamlet vem ao Brasil, fica nu, vive a chacina do Carandiru. A tradução (do próprio Martinez Correa, Nélson de Sá e Marcelo Drummond) procura adaptar o texto à lírica da música popular brasileira. Correa classifica o Shakespeare feito hoje em Londres de "obra de arte morta".
Folha - Em que medida o Hamlet do Oficina contradiz Shakespeare?
José Celso Martinez Correa -Acho que em nada. É Shakespeare chegando no país da antropofagia. Shakespeare em tupi. É a estranheza de entrar em contato com o teatro vivo num lugar vivo.
Folha - Mas você não acha que as referências a Shakespeare podem ficar muito distantes, diluídas?
Correa -As pessoas estão acostumadas a ver a coisa empoeirada, chata, enlatada, enquadrada, empalcada e não é. Ele chegou aqui (ao Brasil) e ganhou outra vida e já veio preparado pelo "Rei da Vela", que tem um lado hamletiano muito forte. É a estranheza com a coisa anticolonial, criada de primeira mão. A mesma estranheza que talvez tenham sentido quando foi feita "Na Selva das Cidades", "Galileu Galilei", "Os Pequenos Burgueses" (peças do Oficina nos anos 60).
Folha - Ao contrário de outras montagens, o personagem central de "Ham-let" apresenta-se extremamente ativo. A peça parece distanciar-se aí também da visão convencional de que Hamlet é um personagem paralisado entre o pensar e o agir. Qual o sentido dramático da mudança?
Correa -A peça é um intrincado de ações, uma catedral de ações, mas é uma ação retardada, que não se cumpre no momento. Não é uma ação de novela das oito, de novela espanhola, tipo ah! matou meu pai, vou matar você. Entra todo um elemento que desnoveliza a coisa, que desdramatiza e leva para um outro lado onde o importante não é a ação pela ação, mas uma ação que contracene com céu, inferno, terra, cidade, políticos, soldado, burocracia, religião, uma ação de transmutação.
Esse é o mistério do Hamlet. Quando você entra em contato com essa peça você entra num processo. Tem um lado dela que é a novela das oito e de repente tem um "off" na novela das oito que explode com ela e explode com você que está fazendo.
Essa encenação não tem conteúdo, não tem uma idéia que você edita. Porque não é uma idéia, é uma vida. No Rio, isso ficou muito claro ,tinha horas em que o espetáculo se espatifava às vezes, porque ele ousava tanto, tanto, tanto e de repente ele retomava não sei de onde.
Folha - Você não acha que essa concepção dramática pode contribuir para desviar o espectador dos dramas essenciais de que o autor se ocupa?
Correa -Não. Ela destrói sim uma idéia colonial e pré-moderna de um Shakespeare copiado de uma coisa que acho que já não é Shakespeare, que são as peças que são feitas hoje em Londres. A Inglaterra de hoje não é aquilo. A do tempo elizabetano era uma Inglaterra muito mais viva, que estava botando navios pro mundo todo, que estava em formação. Não era um país estabilizado onde se insere um teatro que faz peças naquele mesmo palco do mesmo jeito a não sei quantos anos. Aquilo é outra coisa, é obra de arte morta, como o Artaud fala. Somos absolutamente fiéis a William Shakespeare.

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