São Paulo, domingo, 18 de setembro de 1994
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Fortuna e virtude

O chargista Fortuna deixa herança de arte e humor

FELIPE FORTUNA
DE WASHINGTON, ESPECIAL PARA A FOLHA

O último encontro que tive com meu pai aconteceu na quarta-feira, numa visita que já tinha, ironicamente, o sentido de uma despedida (Fortuna morreu no último dia 5). Fui dar-lhe um abraço antes de seguir para Londres, onde deverei trabalhar nos próximos três anos. Meu pai não era homem de viagens: nunca consegui que me visitasse em Brasília, para onde me confessou que só iria se fosse para fazer o lançamento de algum livro seu. Tive a sorte, naquele dia, de me encontrar com Ferreira Gullar.
Foi uma das noites mais divertidas em que estivemos juntos. Meu pai e Gullar relembraram histórias cômicas da época da Revista "A Cigarra", "O Cruzeiro" e "Manchete", do jornalismo feito de improvisação e grande criatividade. Do jeito como foi o jantar, em casa mesmo, com o que havia para servir a visita inesperada.
Improvisação e criatividade são palavras que ajudam a compreender parte considerável de obra de desenhista, ilustrador e caricaturista de Fortuna. Debruçado sobre sua prancheta de trabalho, eu acompanhei desde criança o uso que ele fazia de diversos materiais: cotonete molhado em café, papel de embrulho recortado e pintado, capas para a revista "Veja" feitas com tinta de parede Suvinil, quase tudo lhe servia para extrair imagem e humor.
Mas, terminada a farta improvisação, transformava-se num perfeccionista, para exasperação dos colegas de ofício que muitas vezes não conseguiam incluir um trabalho seu em revistas ou exposições. Quase toda a obra de meu pai serviu para ser publicada no dia seguinte, mas ele atuava como um artista plástico que pudesse passar dias em seu ateliê, pesquisando formas e cores, como se não existissem fechamento de edição e prazo de entrega no jornalismo.
Millôr Fernandes se referia a Fortuna como o maior escritor de humor do Brasil, caso escrevesse. O livro de humor "Acho Tudo Muito Estranho" (São Paulo: editora Anita Garibaldi, 1992), que ele mesmo ilustrou, mostra o quanto escreveu realmente, obcecado pelo nonsense, pelas hilaridades da sociedade de consumo e pela linguagem. Chargista, foi um dos poucos humoristas políticos durante a ditadura militar, publicando seus trabalhos no "Correio da Manhã".
As charges do período 1965-1966 estão reunidas no livro "Aberto Para Balanço" (Rio de Janeiro: Codecri, 1980), e mostram uma contundência e uma sofisticação de técnica, influência de Saul Steinberg e André François, dificilmente igualadas. Junto com Tarso de Castro, criou o suplemento "Folhetim", nesta Folha, que foi o primeiro caderno cultural "alternativo" dentro da grande imprensa.
Outra preocupação sua, a possibilidade de criar histórias em quadrinhos "não-enlatadas" no Brasil, acabou se transformando nos oito números da revista "O Bicho", onde nomes como Laerte, Chico Caruso, Paulo Caruso, Luiz Gê e Luscar divulgaram seus trabalhos fora do esquema underground e marginal.
Foi em "O Bicho" que Fortuna deu continuidade a uma de suas criações mais apolíticas e na qual se sentiu mais livre para criar seu humor: as histórias da "Madame e Seu Bicho Muito Louco", em que um cachorro muito lúcido e com bigodes fazia o contraponto a uma senhora que sempre se mostrava perplexa com o mundo. Recentemente, estava organizando para a Xerox do Brasil uma exposição sobre os originais de seus trabalhos publicados na imprensa, que espero possa acontecer mesmo após a morte de seu autor.
Mas esse não é só um depoimento sobre uma pessoa que foi essencialmente um artista, que fazia rir na página impressa e ao vivo. Na medida em que for possível transmitir minha lembrança passional numa página de jornal, esse depoimento é também a expressão de um sentimento de gratidão por quem soube ensinar-me e educar-me por meio da profissão, da arte e do humor, o que me impede de dizer adeus.

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