São Paulo, domingo, 18 de setembro de 1994
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Betty Milan explora todos os gêneros do desejo

BERNARDO AJZENBERG
SECRETÁRIO DE REDAÇÃO

Em seu novo livro, "A Paixão de Lia", Betty Milan dá asas à imaginação e às fantasias eróticas de uma mulher. Não há propriamente enredo, mas apenas devaneios, sonhos talvez, ou "votos", como diz a própria autora em sua apresentação.
Apesar disso, existe uma lógica na exposição, com um capítulo para cada gênero de desejo. Primeiro, as fantasias com um amante "puro"; depois, o simulacro com vários, incluindo sexo grupal, com direito a uma cadela até; em seguida, a entrega ao sexo oposto sob a perspectiva de uma cortesã; logo, o lesbianismo; e por fim, o anseio pela procriação.
Um enfoque enviesado poderia levar o leitor a sentir-se diante de uma espécie de recital do Kama Sutra. Com efeito, criando uma atmosfera parnasiana –frases invertidas, às vezes rocambolescas, menções a deuses gregos etc– e exótica –os perfumes do Oriente, túnicas, braceletes, guirlandas, narguilés, alcatifas de seda, Xerazade etc–, Betty não poupa recursos nem metáforas para excitar a imaginação (de Lia, a personagem, e obviamente do leitor). Até Billie Holiday, Carlos Gardel e John Lennon, na magia de suas canções, são evocados para isso.
Mas, psicanalista que é, a autora vai, evidentemente, mais fundo (para usar uma expressão adequada ao "clima" do livro). Lia entrega-se ao exotismo como sinônimo de liberdade e prazer infinito; não é o sexo como se vê na "História d'O" –um sexo de ordem e de regras–, mencionada na própria obra. A "viagem" de Lia, ao contrário, é uma frequentação multidirecional do êxtase.
Seu erotismo é fruto de uma sublimação ilimitada, sem imposições, sem julgamentos de ordem moral. E, nesse sentido, ganha justos ares de pureza, apesar dos detalhes à beira da escatologia com que às vezes é armado.
"A Paixão de Lia" não se preocupa explicitamente com apresentar conclusões. Nem precisaria: são pequenos delírios mesmo, e pronto. No entanto, é quase impossível sair do livro, ao final, sem uma espécie de moral da história na cabeça. Ela se insinua, e não por acaso, justamente no último capítulo.
Depois da série de viagens mentais que empreende, sendo a ilha de Lesbos o último de seus cenários simbólicos, Lia "cai" naquela que parece ser a questão das questões: a imortalidade. E esta, raciocina Lia, só a existência de um filho pode outorgar. Referindo-se à sua amante imaginária, ela afirma: "Amo-a mais do que a vida que tenho, porém menos do que a imortalidade, a qual está acima da paixão".
Um filho, pois. Aí está a "conclusão", bem distante de qualquer heresia. Talvez seja por isso que um trecho do próprio livro pode ser utilizado para resumi-lo: "O amante para que eu, com ele, possa me transladar de um a outro sítio, ver, imaginando, as cores todas e a espuma branca do mar. Ser a itinerante e alcançar o Oriente extremo, aí ouvir o alaúde e tomar do chá de menta ou, numa casa chinesa, entrar no paraíso fumando ópio. ...para atravessar os continentes, largar do porto ousando o mar alto e, depois, ao porto retornar".
Moral da história à parte, é evidente o esforço louvável da autora para criar algo de boa qualidade literária no terreno arenoso, arriscadíssimo e já fartamente explorado daquilo que se poderia chamar de ficção-libido. Mas seu êxito, aí, é apenas parcial.
Ao lado de frases bem trabalhadas ("Outra que não eu, por me fazer amar. Ali me fará ser".), lêem-se construções que não primam pelo requinte ("Que o cetro chinês de jade faça da cona um vale púrpura".); e é difícil apreciar literariamente o uso reiterado de expressões como "fenda", "cetro", "meu botão", "borboleta", "pomba", "mastro", "rosa entreaberta", "a brecha" etc, para se descrever o óbvio no sexo.

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