São Paulo, domingo, 18 de setembro de 1994
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O Brasil é um país de réus

JOSÉ PAULO PAES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Embora seja um país despoliciado, onde a criminalidade cresce com rapidez cada vez mais alarmante, nem por isso deixa o Brasil de ser um país de mentalidade policial. Quando falo em mentalidade, não me refiro à das classes populares (que só contam na hora de se lhes pedir o voto), mas das chamadas classes dirigentes. Uma conhecida minha, a Sra. D., me contou recentemente, muito assustada, que recebera uma intimação do Poder Judiciário. Grifei a palavra para imitar o tom de susto com que a Sra. D., a pronunciou quando me explicava que, a pedido de uma amiga injustamente acusada num processo, aceitara testemunhar em juízo sobre o que conhecia do caráter e da conduta dela.
Ri-me do susto da Sra. D., mas quando ela insistiu em mostrar-me o texto da intimação, percebi, consternado, que tinha razões de assustar-se. Pela sua linguagem, o documento parecia estar dirigido, não a uma inocente testemunha, mas a um réu de delito confesso.
A começar do seu título, "carta de intimação de testemunha". O verbo "intimar" tem a acepção de "falar com arrogância ou mando", donde caber a pergunta: por que falar arrogante ou mandonamente com quem se dispõe, de espontânea vontade, a cumprir seu dever de cidadão e colaborar com a lei? Não seria o caso de, em vez dessa policialesca "intimação", usar "convocação", um substantivo tão mais civil? Civil no duplo sentido de "cortês, polido" e de "relativo às relações dos cidadãos entre si". Se não estou enganado, testemunhas e juízes são ambos cidadãos em face da lei maior, a Constituição.
Mas o problema não pára aí. Na sua parte final, a "carta de intimação de testemunha" diz enfaticamente: "ficando, desde já, cientificado(a) de que poderá vir a ser processado(a) por desobediência e condenado(a), SE DEIXAR DE COMPARECER SEM MOTIVO JUSTIFICADO, IMPLICANDO, AINDA, EM SER CONDUZIDO(a) COERCITIVAMENTE POR OFICIAL DE JUSTIÇA DESTE JUÍZO OU PELA POLÍCIA".
Essas maiúsculas, que soam como um berro de "Mãos ao alto!", não são minhas, são do próprio documento. Parecem pressupor, na testemunha intimada, a intenção implícita de desobedecer. Se assim não fosse, por que as maiúsculas intimidadoras? Não bastaria dizer, civilmente e em letra minúscula, "se deixar de comparecer estará sujeito(a) às penas da lei" ou algo que lhe equivala no jargão jurídico?
Por sob estas miúdas questões de redação oculta-se algo que todos nós subliminarmente conhecemos por experiência própria. Ou seja, que no Brasil o cidadão é visto sempre como culpado pela autoridade a quem tenha de prestar contas, seja ela qual for –municipal, estadual, federal, policial, fazendária, judiciária, que sei eu mais. Ele está obrigado a provar, a cada passo, sua inocência, quando o contrário seria de esperar numa sociedade democrática de fato, onde o ônus da prova recai sobre o acusador, não sobre o acusado.
Fico a cogitar com os meus botões se esse inato, kafkiano sentimento de culpa que o brasileiro traz dentro de si, e que as mais das vezes o faz baixar a cabeça diante da arrogância do Poder, não teria raízes na própria formação histórica, eminentemente católica, do nosso país. Todo católico aceita, pelo batismo, uma parte de culpa no pecado original cometido pelos pais primevos, Adão e Eva. Mas o sentimento de culpa a que me refiro tem raízes menos remotas. Deve ter vindo dos tempos da Inquisição, aqui chegada com o colonizador português.
Ninguém ignora haver sido em Portugal e na Espanha que o Santo Ofício prosperou como em nenhuma outra parte, e isso no mesmo século em se deu a descoberta e se iniciou a colonização do Brasil. Tanto assim que já em 1591 desembarcava na Bahia a Primeira Visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil, que aqui vinha apurar e punir crimes contra a fé e a moral. A terribilidade tanto dos processos de tortura usados pelos inquisidores para arrancar confissões quanto dos processos de punição por via dos quais pretendiam "salvar" a alma dos condenados é sobejamente conhecida.
Aos olhos do Santo Ofício, cujo passatempo preferido era acender fogueiras para queimar os inimigos da fé, a heresia estava por toda parte e todos eram suspeitos dela. Uma simples denúncia bastava para que qualquer um fosse parar nas suas masmorras. Daí não estranhar que o zelo fanático dos inquisidores criasse entre o comum das pessoas um pavor generalizado, a que se associava um irracional sentimento de culpa, fácil de medrar em espíritos obsessionados com a noção de pecado.
Quem sabe não provém dessa raiz quinhentista a nossa síndrome de réus subliminares, que o autoritarismo das estruturas brasileiras de poder, também nascido da mesma raiz inquisitorial, só fez aumentar ao longo dos quatro séculos da nossa formação histórica –do absolutismo colonial, passando pelo mandonismo escravocrata, até o republicanismo de quartel que os sucedeu. Pelo que possa valer, aí fica a sugestão para nela meditar o leitor mais imaginativo a quem não assuste a amplitude dos saltos regressivos quando se trata de entender em que medida o presente pode ser filho obediente do pior passado.

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