São Paulo, domingo, 18 de setembro de 1994
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O paradoxo dos palanques

CELSO FURTADO

Pela primeira vez entre nós a opinião pública se desdobra nitidamente em duas vertentes, que em linguagem anacrônica podem ser qualificadas de direita e esquerda.
A divisão é clara quando observamos os palanques: de um lado aparecem as figuras clássicas das velhas oligarquias que derivam seu poder do controle da terra, do sistema financeiro e dos meios de comunicação. São forças que lutam para que o Brasil continue a ser o que sempre foi: o país do contraste entre a riqueza ostensiva e abusiva e a miséria submetida e fatalista.
No outro palanque nos deparamos com um espetáculo algo surrealista: gente que denuncia o quadro social terrificante de milhões de famélicos em um país que é um dos maiores exportadores de alimentos do mundo, de elevados índices de mortalidade infantil que não se explicam pelo nível de renda da população, um quadro de concentração de riqueza e renda que não encontra similar em todo o planeta.
O paradoxo está em que, quando nos aproximamos dos dois palanques e fazemos um escrutínio do discurso dos grandes tenores de um e outro lados, constatamos uma grande convergência de mensagens, pelo menos quando estas contêm alguma substância.
Todos estão de acordo em que, acima de tudo, é necessário estabelecer e consolidar as condições de governabilidade do país, mas que a estabilidade de preços não deve ser alcançada à custa do desemprego e da recessão.
Reconhecem que em face do dinamismo demográfico, do potencial de recursos naturais e do grau de acumulação já alcançado, a estagnação da economia brasileira somente encontra explicação na inépcia dos dirigentes do país. O grau de endividamento externo excessivo deve ser corrigido para que se recupere a plena governabilidade. Etc. etc.
Inexistem discrepâncias a nível da identificação dos problemas; a questão está em decidir-se a enfrentá-los. Tão importante como definir o que fazer é pôr-se de acordo sobre como fazer. É aqui que os dois palanques parecem falar idiomas diversos.
Ninguém ignora que existe uma antinomia entre as aspirações da sociedade –vocalizadas nos programas da esquerda e da direita– e o esforço financeiro sancionado pelos dirigentes do país. A carga fiscal que incide sobre a renda dos ricos é certamente das mais baixas do mundo, assim como a que incide sobre os pobres é das mais elevadas. Daí que falar em aumento da carga fiscal seja tabu para a direita e a esquerda.
O surpreendente não está no quadro social aberrante, e sim no contraste entre o que fazem as elites dirigentes e o discurso que praticam. A nudez da verdade pode manifestar-se nos lampejos de um delírio parabólico.
Mas ninguém se detém a pensar que, se existe uma crise fiscal, é porque o ônus da dívida externa foi assumido pelo Estado para aliviar as empresas privadas que se haviam endividado no exterior. E se as responsabilidades do poder público são negligenciadas, é porque os compromissos financeiros do Estado (o serviço da dívida) têm prioridade sobre os demais gastos.
Se as plataformas são todas avançadas, e no essencial se confundem, é difícil escapar à conclusão de que o futuro nos prepara amarga decepção: as promessas, ou são insinceras, ou utópicas.
A direita simplifica a realidade, ignorando os profundos conflitos de interesses subjacentes, como se as dificuldades a enfrentar fossem de natureza administrativa, e não política. Cria-se assim um horizonte radioso e enganador.
A esquerda multiplica invectivas e nega ao adversário fundamento ético, ao mesmo tempo que transmite a ilusão de que, sem o mau-caratismo dos que tradicionalmente ocupam o poder, as soluções dos graves problemas sociais brotarão naturalmente.
Como é de mau gosto abordar problemas em torno dos quais não há consenso, ou deslizar para o viés ideológico, é mais eficaz eleitoralmente denunciar a "corrupção" do que a pirataria do sistema financeiro, o escândalo da estrutura agrária e o despautério da fome endêmica de milhões de pessoas.
Faz-se evidente que a nossa é uma sociedade errada que requer um redesenho, o que somente será possível se se mobilizarem vastas energias sociais através de um grande debate e confronto de idéias, a exemplo do que aconteceu no século passado entre nós com o movimento abolicionista.
Por mais dotado que seja o cidadão que assuma a Presidência da República, as dificuldades que deverá enfrentar serão imensas. Há muito o Brasil deixou de ser governável, situação que se agravou com o considerável avanço recente da transnacionalização dos circuitos tecnológicos, financeiros e produtivos.
É necessário, portanto, que se amplie e aprofunde a participação da cidadania na geração de recursos de poder, pois somente uma verticalização da democracia pode abrir o caminho da reconstrução das estruturas que almejamos.
Essa reforma da sociedade é essencial para que o Estado seja liberado do sistema de poder que o tutela atualmente. A democratização do Estado é condição necessária para que o desenvolvimento se faça a serviço do povo.

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