São Paulo, domingo, 18 de setembro de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O novo "nego" da Paraíba

GERARDO MELLO MOURÃO

A insólita decisão de um Tribunal Superior, pretendendo fulminar a candidatura a senador pela Paraíba do sr. Humberto Lucena, e logo do sr. Humberto Lucena, o presidente do Congresso que acolheu e acionou o processo de impeachment do sr. Collor de Mello, estourou como uma bomba-relógio.
A primeira impressão que se tem é de que o Tribunal Eleitoral deixou de ser um foro, para tornar-se num desaforo, não apenas contra o Senado, mas contra todas as regras do jogo democrático das eleições. Até o prazo de impugnações estava vencido.
O desaforo do TSE torna-se mais escandaloso quando se sabe que o relator da causa foi o venerando ministro Marco Aurélio Afonso de Farias Melo, filho do sr. Plínio Melo, honrado corretor de imóveis, tio do falecido sr. Collor de Mello, que o tirou de sua modesta banca de corretagem paterna para a cadeira do Supremo.
Também o sr. Sepúlveda Pertence, que preside o TSE e que se absteve de votar na querela paraibana, alegando que a questão não é constitucional, é membro do Supremo e, pois, um venerando ministro.
Ora, os Tribunais Superiores são superiores, "ma non troppo". Acima deles está o Supremo, que também, embora supremo, não é intocável. Muito menos infalível. O "venerando" é um título, não um adjetivo qualificativo. Se fosse, o sr. Marco Aurélio, jovem primo do finado Collor de Mello, ao menos pela idade, não chega a ser tão venerando assim. Mas isto é outra história.
É e não é. Pois, ao que consta, o primo-ex-presidente tirou, da adega da Casa da Dinda, uma garrafa de champagne para comemorar a suposta cassação do senador que instituiu a CPI que o escorraçou do poder. A primeira, ele já a havia estourado quando foi cassado o mandato do malogrado Ibsen Pinheiro. Mas esta também é outra história.
O país está assistindo a várias tentativas de decidir as eleições no tapetão. Esta foi mais uma e mais grave. Traduziu não apenas o faniquito de candidatos em desespero de causa, mas a perversão da Justiça Eleitoral. Retirar da vida pública um senador exemplar, com mais de 30 anos de mandato parlamentar, sob alegações no mínimo fúteis e ridículas, é um desserviço à democracia.
Tive longo e honroso convívio com Lucena. Fomos colegas na Câmara dos Deputados, na áspera e martirizada legislatura de 63 a 67, expostos todos nós aos raios da ditadura militar. Lucena nunca vacilou na resistência ao regime de arbítrio. Já tinha 12 anos de vida pública, quando ficou sem mandato, em 1967, tendo que trabalhar como jornalista, a convite do senador João Calmon, para sobreviver honradamente.
No auge do sufoco do regime de 64, degolado o grande líder Martins Rodrigues, poucos se dispunham a aceitar o perigoso cargo de líder da oposição. Foi para o limpo e bravo deputado paraibano que nos voltamos todos. Eu mesmo fiz questão de dizer-lhe: "Prepare-se; a liderança tem de ir para suas mãos".
A Paraíba o julgou: mandou-o duas vezes para o Senado. Depois da sentença de um Tribunal equivocado –e este é o adjetivo mais brando que se pode usar–, a honra dos paraibanos vai apelar para um tribunal, este sim, supremo e infalível: o tribunal do povo.
As urnas da Paraíba, do brejo e do litoral, do sertão e de nossas Borboremas azuis, vão falar no dia 3 de outubro. Até porque o Estado inteiro foi afrontado por essa sentença esdrúxula, que atingiu as melhores lideranças do Estado, dos Cunha Lima ao candidato vitorioso ao governo, o senador Antônio Mariz, escolhido –e não por acaso– por todos os partidos, para relator do impeachment do primo-presidente.
O discurso proferido no Senado, na quarta-feira última, pelo senador Mariz, ameaçando retirar sua candidatura ao governo, diante da agressão pretoriana ao senador Lucena, é um dos momentos altos de nossa história parlamentar.
Com sua sólida formação jurídica, com sua tradição quase ascética na política de sua terra, vertical como um coqueiro e áspero como um cactus, o Mandacaru de Sousa –sua terra sertaneja na Paraíba do Norte– reviveu no Senado as vozes mais altas de sua gente. Tem-se a impressão de se estar ouvindo de novo as imprecações proféticas e irrespondíveis de José Américo.
Os pequenos juízes –superiores, mas não intocáveis– não poderão mais dormir em paz com sua consciência e sua fraturada competência jurídica, depois do libelo de Antônio Mariz.
As depravações da vigência política brasileira foram mais de uma vez denunciadas pela pequena Paraíba –aquela "muié macho, sim sinhô" da cantiga do Homero sertanejo que foi Luís Gonzaga. Foi o telegrama lacônico de João Pessoa, hoje inscrito na bandeira do Estado, dizendo um seco e contundente "nego" ao então presidente da República, que condenou à morte o regime de 1930. E foi a morte de um político paraibano –o mesmo João Pessoa– que deflagrou a revolução de 30.
Coube a Mariz repetir o "nego" histórico da Paraíba aos abusos do poder. Esses abusos, agora partidos do Judiciário, em nome da revolução ética que apenas se balbucia em nossa vida pública, são muito mais graves que as práticas talvez pouco ortodoxas do Legislativo, de abrir um miserável crédito de R$ 4.000 anuais para divulgação de trabalhos e comunicação dos parlamentares com seus eleitores. Isto será, se quiserem, mais um aspecto do "hímen complacente" da consciência dos políticos.
Parece que todos ou quase todos os senadores se têm servido dessa prática, que não é monopólio nem invenção do senador Lucena. E que é irrelevante diante do escândalo da impunidade em que se encontram as quadrilhas de Ali Babá do ex-Collor de Mello. Compare-se o passo de cágado dos processos contra os grandes corruptos com a velocidade para julgar uma conta legal de R$ 4.000 na gráfica do Senado.
Resta esperar que a síndrome da Paraíba funcione mais uma vez para corrigir os vícios do país. Entre eles, a tentativa covarde e hipócrita de enganar a opinião pública com o arroto jurídico de uma falsa ética.

GERARDO MELLO MORÃO, 75, poeta e escritor, é presidente da Academia Brasileira de Filosofia e membro do Conselho Nacional de Política Cultural do Ministério da Cultura. Foi correspondente da Folha em Pequim (China) de 1980 a 82.

Texto Anterior: O paradoxo dos palanques
Próximo Texto: Embaixador dos EUA; Artista e esquerda; Promessas vãs; Marketing do PT; Aids e complacência; Crítica musical; Filósofo criticado
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.