São Paulo, segunda-feira, 19 de setembro de 1994
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Contradições do governo

FLORESTAN FERNANDES

O governo do sr. Itamar Franco está sendo beneficiado por avaliações positivas que está longe de merecer. O imediatismo cega as pessoas e as leva a confusões oscilantes.
Poucos são os ministros com envergadura intelectual e política. Alguns, mais eficientes, passam pelos cargos como um relâmpago. Outros participam do governo e "dão as cartas", incluindo-se no "grupo dos válidos". Por fim, o poder está deslocado de lugar.
Como se fosse a rainha da Inglaterra, ele mais aparenta que é o centro do poder. A famosa equipe econômica decide tudo. Torna-se difícil dizer o que ela representa para o Brasil. Se se trata do início de uma nova era, na qual a tecnocracia desempenha os papéis dirigentes principais, ou se o grupo tecnocrático ocupa um vazio, preenchendo papéis passageiros, condenado a dissolver-se com o "plano econômico", graças à tecnocratização do Estado.
O que tem afetado o sr. presidente é antes um anedotário rico de variações. O que se deveria ressaltar, porém, são as inconsistências do seu governo. A mais forte delas nasce de sua predestinação a confundir inclinações sentimentais com assuntos do Estado. Não que seu governo seja de filhotismo. Todos sabemos que não é. O "grupo dos válidos" evidencia a natureza de suas debilidades: o favoritismo. Só os favoritos contam com a confiança total.
Outra limitação capital liga-se a um aparente conservantismo esclarecido, que responde por suas poucas ações e realizações meritórias. Mas dele procede o sentido de dever e lealdade ao presidente, danoso ao país. O melhor exemplo consiste na restauração e reforço do militarismo. Superou Sarney na obediência à estratégia da "transição lenta, gradual e segura" traçada no ocaso da ditadura.
A terceira fragilidade –consequência da falta de alguma vocação de estadista– resulta de sua personalidade. Vice de um presidente voluntarioso e autocrático, que não cederia espaço a alguém que lhe fizesse sombra, tende a pensar, agir e sentir como "o substituto".
Por isso, o governo e suas funções nacionais e internacionais encantam-no como um mundo de opereta. Mas não conta com recursos pessoais para praticar a política a partir das complexas exigências de uma nação pobre e desigual, capaz de se dotar de autonomia e de uma lógica política inflexível em relação às elites privilegiadas dos cidadãos que mandam e, em particular, à dominação externa.
Assim, inculcou-se publicamente a função de combater a miséria, o desemprego, as carências educacionais e médico-hospitalares etc. Omitiu-se, porém, diante desses e outros dilemas sociais, transferindo aos privilegiados a proteção do Estado! Quanto à dominação externa, inscreve-se na história como o presidente que endossou o modelo econômico de dependência e neocolonialismo, inerente ao imperialismo oligopolista e "neoliberal".
Cem vezes melhor que Collor, no entanto, ataca a ruptura histórica em processo. E abandona o país a continuidades indesejáveis e a um padrão de modernização de perspectivas sombrias.

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