São Paulo, quarta-feira, 21 de setembro de 1994
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'Di' é o fantasma que ronda obra de Glauber

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

O fantasma de "Di" está longe de descansar. O filme de Glauber Rocha, realizado durante o velório do pintor Di Cavalcanti (morto em 26 de outubro de 1976), está proibido pela Justiça desde 1979, a pedido de Elizabeth, filha do pintor.
Quinze anos depois, Mário Carneiro, 64, fotógrafo do filme, recoloca o problema. Que direito tem a Justiça de banir uma obra de arte? Até que ponto pode a família controlar a imagem de uma figura pública?
Carneiro pretende iniciar um movimento que reabra o diálogo com a família e termine com a liberação do filme.
Fotógrafo e diretor, Carneiro resume boa parte da história do cinema brasileiro. Foi ele que, praticamente, criou o o estilo que caracterizou o Cinema Novo (câmera na mão, uso de equipamento leve).
É por fim como filho de Paulo Carneiro, amigo de Di, e ex-embaixador do Brasil na Unesco que ele se manifesta nesta entrevista concedida à Folha no "set" de "O Enigma de um Dia", curta-metragem de Joel Pizzini.

Folha - Como surgiu a idéia de articular um movimento pela liberação de "Di"?
Mário Carneiro - Veja, os negativos deste filme encontram-se lacrados em uma urna, a exibição das cópias existentes também está proibida, por decisão judicial. Então, "Di" virou uma espécie de filme morto, um fantasma que alguns assistiram na época. Mas um filme central na obra de Glauber.
Folha - Qual é a importância do filme?
Carneiro - O Glauber tinha voltado há pouco do exílio, estava deprimido, procurando o que filmar. Quando soube da morte de Di, a produção se montou na hora. Alguém emprestou a câmera. O Nelson (Pereira dos Santos) deu o negativo. Ele entrou numa enorme excitação criativa e nós fomos para o velório, no Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio.
Folha - O que justificou a apreensão do filme?
Carneiro - Durante a filmagem do velório, Glauber tirou o véu que havia sobre o rosto de Di. A filha, Elizabeth, reclamou na hora. O fato é que o filme era como se fosse uma festa para Di. Não um filme mortuário, mas uma festa.
Folha - Glauber gostou muito de trabalhar com você, não?
Carneiro - É que logo de cara eu resolvi tirar o filtro fora. Sem filtro, trabalhando só com luz natural e com 1/3 de diafragma a mais, o filme ganhou um tom arroxeado próximo à idéia da morte. Depois, ele gostou da idéia de filmar sem filtro, e queria que eu fotografasse "Idade da Terra", mas eu não pude. Mas "Di" funcionou como base da estética que ele adotou em "Idade da Terra".
Folha - Voltando à filmagem. Essa alegria de Glauber não foi o motivo da hostilidade da filha?
Carneiro - Acho que é preciso mudar a compreensão do problema. Assim como no passado se faziam máscaras mortuárias de artistas, que eram uma intervenção inclusive física no rosto das pessoas, o Glauber fez uma homenagem ao pintor. Di não era um morto da família. Era um morto do Brasil.
Folha - A Justiça não viu a coisa assim.
Carneiro - Disso eu não sei. O fato é que isso é uma coisa incômoda para a cultura brasileira. Há algo do Glauber enterrado, morto. Folha - A sua importância no cinema brasileiro não vem desse filme. Como foi sua formação?
Carneiro - Eu me formei em arquitetura, cheguei a ter escritório e tudo. Eu fui aluno de pintura e gravura do Iberê Camargo. Na França, costumava fazer cópias de grandes pintores no Louvre. E também ia muito à cinemateca, tanto aqui como lá.
Folha - Como você chegou ao cinema?
Carneiro - Aí há uma série de coisas. Em 1955 eu comprei uma câmera Paillard de 16mm e comecei a fazer filmes de amador. Em 1957, mostrei esses filmes para um dos grupos que viriam a formar o Cinema Novo, como Paulo César Saraceni e Joaquim Pedro.
Folha - Mas o momento de invenção da nova fotografia foi em "Porto das Caixas", de Paulo César Saraceni (1959), não?
Carneiro - E também "Arraial do Cabo" (1958). O grupo que eu conhecia ainda tinha uma influência grande da Vera Cruz. O que eu trouxe, acho, foi uma grande liberdade. Eu achava que seria pintor, daí a minha audácia. A experiência com pintura me deu uma educação grande do olhar. O cinema de amador me liberava da parafernália do estúdio. Então, eu criei essas condições de ligeireza, trabalhando com pouca luz. "Porto das Caixas" lançou essa maneira de filmar.
Folha - E a câmera na mão também?
Carneiro - Isso foi mais em "Arraial do Cabo", que era um documentário. Era preciso filmar ligeiro. Então, foi o filme em que eu tirei a câmera do tripé de uma vez. Para mim não era difícil, porque nos meus filmes de amador eu costumava filmar assim.
Folha - O cinema mudou muito de lá para cá. Como você vê, hoje, a câmera na mão?
Carneiro - É um recurso para certos momentos. O "Di", por exemplo, é todo com câmera na mão, o que dá aquela coisa nervosa que tem no filme. O único fotógrafo que pode usar câmera na mão em qualquer ocasião é o Dib Lufti (fotógrafo famoso pela habilidade com a câmera na mão).
Folha - Como evoluiu a fotografia no Brasil dos anos 60 para cá?
Carneiro - Houve um momento, com a Embrafilme, em que se permitiu produções maiores. Também houve quem procurasse um ensino mais sólido, no exterior, como Lauro Escorel, Edgar Moura. Houve também o aparecimento do cinema publicitário, que deformou muito os orçamentos, com filmes muito caros e a visão de que orçamento é igual a qualidade.
Folha - E agora?
Carneiro - O que eu vejo é muita expectativa e muita ansiedade. Há muitos diretores com roteiros prontos e pouco dinheiro para produção. O único caminho para o cinema é a participação da TV.
Folha - Você fez há pouco tempo a fotografia do "Memorial de Maria Moura" para a Globo. O que achou da experiência?
Carneiro - É uma coisa que eu me esforço para fazer. É um trabalho pesado, às vezes de 16 horas por dia. Há um lado curioso: as pessoas da TV olham a gente, do cinema, com certa desconfiança.
Folha - Agora você faz um filme – "O Enigma de um Dia"– a partir de um quadro de De Chirico. O que a pintura tem a dar ao cinema?
Carneiro - Na pintura, a cor é resultado da sobreposição de várias camadas de cor. Nesse sentido, a equivalência não é absoluta. O cinema só pode apreender a última camada, a visível. Agora, você pode distinguir entre "pintores cineastas", como Tintoretto, tanto pelos enquadramentos inusitados como pelo uso do contraluz. O maior, nesse sentido, eu acho que é Giotto. Ao mesmo tempo, há pintores como El Greco, ou Grunewald. Eles fazem uma luz que parece vir de dentro das imagens. Nenhum iluminador fará uma luz como essa.

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