São Paulo, quinta-feira, 22 de setembro de 1994
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Transformação de Lisboa daria um filme

JOSÉ SARAMAGO
DO "EL PAÍS"

Houve uma época em que Lisboa ainda não havia recebido esse nome. Já a chamavam de Olisipo quando os romanos chegaram. Olisabona quando a tomaram os mouros, que em seguida diziam Aschbouna, quem sabe por não saberem pronunciar a bárbara palavra.
Quando, em 1147, após um sofrido cerco de três meses, os mouros foram vencidos, o nome da cidade certamente não mudou na hora seguinte: se dom Afonso Henriques enviou uma carta à família naquela altura, deve haver escrito no alto dela "Aschbouna", 25 de outubro, ou quem sabe "Olisibona", mas nunca "Lisboa".
Quando foi, então, que Lisboa começou a ser Lisboa de fato e de direito? Os historiadores com certeza o sabem, mas não é uma informação que conste nas enciclopédias ao alcance dos comuns.
Sem dúvida alguns anos tiveram que se passar antes que pudesse nascer o nome novo, como também foram necessários alguns anos para que os bisonhos conquistadores galegos começassem a se tornar portugueses.
Dir-se-ia que pouco interessam essas miudezas históricas. Estou de acordo, mas interessaria muito –a mim, pelo menos– não apenas saber, mas também ver, no sentido mais exato da palavra, como Lisboa vem mudando daqueles tempos remotos até hoje.
Se o cinema tivesse existido na época, se as mil e uma transformações de Lisboa ao longo dos séculos tivessem sido registradas por esse meio poderíamos agora, em duas horas, assistir a essa Lisboa de oito séculos crescer e mover-se como um ser vivo.
Igual a essas flores que a televisão nos mostra abrindo-se em poucos segundos. Creio que amaria essa Lisboa acima de todas as coisas.
Sendo óbvio que habitamos fisicamente um espaço, sentimentalmente somos habitados por uma memória. Memória esta que vai crescendo constantemente e também reduzindo-se, no interior da qual vivemos, como numa ilha flutuando entre dois mares: um ao qual chamamos passado, outro que chamamos de futuro.
Esse filme único comprimiria o tempo e expandiria o espaço. Representaria a memória perfeita. O lugar estava ali, a pessoa apareceu e depois partiu, o lugar continuou, o lugar havia feito a pessoa, a pessoa transformou o lugar.
Quando um dia tive que recriar o espaço e o tempo de Lisboa onde iria fazer o personagem Ricardo Reis viver seu último ano, eu sabia de antemão, ao voltar 50 anos atrás no tempo, que em quase nada poderiam coincidir duas percepções de lugar e de tempo necessariamente diferentes.
A do adolescente tímido que fui, encerrado em uma condição social inferior, e a de um poeta lúcido e genial que frequentava, como por direito próprio, as regiões mais elevadas do espírito.

Tradução de Clara Allain

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