São Paulo, quinta-feira, 22 de setembro de 1994
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Capital abandona marasmo e indiferença

JOSÉ SARAMAGO
DO "EL PAÍS"

Minha Lisboa foi sempre a dos bairros pobres, e quando, muito mais tarde, as circunstâncias e as mudanças da vida me levaram a viver em outros rios e ambientes, a memória que mais ciumentamente quis consevar, até hoje, foi a da Lisboa dos meus primeiros anos, a Lisboa da gente de poucos pertences e muito sentir, ainda rural em seus costumes e em sua compreensão do mundo.
Aqueles primeiros portugueses sofreram e morreram muito para conquistar Lisboa. Sofreram e morreram muito os mouros que nela bem teriam desejado continuar vivendo, como já viviam 400 anos. As guerras têm sempre duas versões, a dos vencedores e a dos vencidos.
Cultivamos nossa versão, a dos vencedores. Ocorreu o memorável episódio no dia 25 de outubro, consagrada pela Igreja Católica a dois de seus santos, Crispim e Crispiniano, o primeiro dos quais deu seu nome às escadarias altas que vão dar no lugar em que se encontrava, naqueles tempos, o portal Alfofa, no ponto exato em que se juntam as atuais ruas da Saudade e Bartolomeu de Gusmão.
Talvez não seja possível falar de uma cidade sem citar datas notáveis de sua existência histórica, onde não faltam batalhas.
Pensemos que do mesmo sangue derramado pelos dois lados é feito o sangue que levamos em nossos corpos, nós, os herdeiros desta cidade, filhos de cristãos e de mouros, de negros e de judeus, de índios e de amarelos.
Lisboa se transformou rapidamente nos últimos anos. Decadente, abandonada até dias bem recentes, foi capaz de fazer despertar na consciência de seus cidadãos uma força renovada que a arrancou do marasmo e da indiferença.
Em nome da modernização se erguem muros de cimento sobre as pedras antigas, se transformam os perfis das colinas, se alteram os panoramas, se modificam os pontos de vista. Mas o espírito de Lisboa sobrevive há séculos e é o espírito que torna eternas as cidades.
Arrebatado por aquele louco amor e entusiasmo que habitam os poetas, escreveu Camões, falando de Lisboa: "...cidade que facilmente das demais é princesa". Perdoemos o exagero.
Basta que Lisboa seja o que simplesmente deve ser: feliz, culta, moderna, limpa, organizada, sem perder nada de sua alma antiga. E se todas essas qualidades acabaram por fazer dela uma rainha, que assim seja.

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