São Paulo, domingo, 25 de setembro de 1994
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Não basta apenas prometer o paraíso

HERBERT DE SOUZA

É positivo que o combate à fome e à miséria tenha se transformado em prioridade para a opinião pública nacional e, em consequência, esteja na agenda de todos os candidatos que disputam o voto da cidadania.
Como sempre, a iniciativa coube à sociedade e o Estado veio a reboque. Os candidatos seguiram a procissão.
A sociedade brasileira acordou. A pobreza não se admite mais. A miséria é intolerável. O Estado deve servir para resolver as questões fundamentais da população.
A economia deixou de ser o território da elite e está sendo disputada por todos. Os economistas estão sob suspeita. Os ministros das finanças estão sob vigilância ativa da sociedade. Democracia é isso, serve para todos ou não serve para nada.
Finalmente a ética assume o comando da política no Brasil. Ainda há um grande caminho a percorrer, mas já estamos no rumo certo. Vices têm que renunciar, ministros pedem perdão, todos se cuidam. A ética é um belo fogo para temperar a democracia.
Não adianta querer ganhar as eleições às custas da fome e da miséria e de promessas que agora prometem o céu para quem sempre viveu no inferno. É que hoje existe um movimento social chamado Ação da Cidadania contra Miséria e pela Vida que expressa uma outra consciência da realidade, que é profundamente crítica do poder e que não assina mais cheque em branco para ninguém. Essa é a novidade. Milhões de pessoas pensam assim e vão cobrar.
Acabar com a pobreza e a miséria é possível. Mas para isso é fundamental mudar radicalmente a economia e não simplesmente fazer ajustes. Não entendo como se pode pretender ajustar o que produz a miséria.
É fundamental democratizar o Estado e mobilizar amplamente a sociedade, a cidadania. Nenhum presidente fará isso sozinho ou com seu governo, nenhum partido ou aliança de partidos terá esse poder em suas mãos.
Não existem segredos no combate à miséria. Todo o país sabe de cor a receita: geração de emprego, retomada do desenvolvimento, controle dos oligopólios, distribuição da renda e da terra, investimentos expressivos em educação e saúde pública.
Os caminhos podem ser diversos. Pequenas empresas geram mais empregos que as grandes. No nosso estado atual de miséria, não é possível prescindir de ações emergenciais em relação à comida e criação de frentes de trabalho capazes de incorporar os milhões de excluídos de qualquer esperança.
Os Estados Unidos, país de Primeiro Mundo, dos mais ricos desse planeta, tem talvez um dos movimentos mais amplos e massivos de combate à fome. Mais da metade da população contribui para aliviar a fome.
As pessoas contribuem com bilhões de dólares por ano para 400 organizações privadas que lutam contra a fome. Mais de 150 mil organizações privadas distribuem alimentos para a população, cestas básicas, sopas, lá como aqui. Distribuem cerca de US$ 3 bilhões a US$ 4 bilhões em alimentos. De 20 a 30 milhões de americanos passam fome. Uma em cada cinco crianças americanas passa fome.
Lá, o governo federal aplica por ano mais de US$ 39 bilhões em programas de luta contra a pobreza, enquanto a sociedade civil entra com US$ 4 bilhões. Esses dados mostram como ser de Primeiro Mundo não significa muito para o conjunto da sociedade e como a economia pode ser perversa em qualquer parte.(1)
Mas todo o mundo sabe também que essa não é a prioridade da elite que domina as finanças, os grandes conglomerados, os donos da nona economia mundial, o Brasil.
Aí está a questão fundamental: quem vai se confrontar com esses interesses para fazer a mudança que todos anunciam e ninguém faz?
Não adianta anunciar medidas espetaculares e depois dizer que isso só será possível se previamente forem dadas as condições para sua realização. Primeiro, reforma fiscal, reforma da Constituição, superação definitiva da inflação. Depois, todos os outros problemas serão enfim resolvidos.
É como dizer: te darei o céu, se Deus estiver de acordo. Milagre não vale. Por isso, o sinal de que alguém está efetivamente querendo colocar em prática o que anuncia é o apelo à mobilização da sociedade para lutar por esses objetivos e não o simples apelo à razão, à lógica, à racionalidade dos que prometem o céu mas administram o inferno. Porque essa mudança é política e se fará com vontade política e com muita gente empurrando nessa direção.
Este país mudaria de fato e mais rápido se conseguíssemos colocar nas ruas os 32 milhões de indigentes ocupando as ruas, praças e a consciência da nação.
Creio que o país está cheio da empáfia dos que sabem como se faz a mudança mas vivem listando as condições lógicas de sua impossibilidade.
O Brasil não precisa de doutores, mas de transformadores. Os doutores produziram essa miséria que aí está, principalmente os da turma de economia, que, é verdade, nunca agiram por conta própria.
A sociedade vai pressionar no sentido da mudança. O sinal de que um governo está no rumo da mudança é a sua prática cotidiana, coerente e corajosa capaz de enfrentar os grandes interesses da minoria para atender as necessidades básicas da maioria: pão, trabalho, liberdade, informação, cidadania. Nada mais precisa ser inventado. Mas tudo está ainda por ser feito, desde que a opção pela erradicação da miséria e a construção da democracia seja definitiva e determinada.

(1) "Hunger 1994, Transforming the Politics of Hunger. Fourth Annual Report on the State of World Hunger. Bread for The World".

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