São Paulo, domingo, 25 de setembro de 1994
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O frio povo do norte

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Que é preciso encontrar num povo, como num homem, seu traço característico, pois todos os demais são o efeito de mil acasos diferentes e só este constitui o seu ser –eis o que pensa Madame de Staël (Anne Louise Germaine de Necker Staël-Holstein, 1766-1817), baronesa e intelectual francesa que, em seu livro "Da Alemanha" (1813), tentou definir o "traço característico" do povo alemão.
A depender da imagem veiculada pela imprensa brasileira, em manchetes coletadas nos últimos cinco meses, a Alemanha ainda é principalmente um país bélico, às voltas com nazismo e racismo. De 30 manchetes coletadas, apenas quatro não diziam respeito a nazismo, racismo ou fatos de ordem militar relacionados com a Segunda Guerra (veja box)
São os estigmas: o fato de haver ainda 3.000 bombas enterradas no subsolo de Berlim desde a Segunda Guerra desenha a bico de pino de granada a imagem da Alemanha no mundo. Em maio último, parada na plataforma de uma estação de metrô em Munique, vi chegar na linha oposta um trem onde se lia na placa de destino: DACHAU (um dos campos de concentração de judeus durante o nazismo). Um arrepio, misto de terror e fascínio pela cena cinematográfica, me fez identificar naquilo, como em nada antes, a Alemanha.
Melhor, a presença física do negro na Alemanha já não surpreende. A mistura é que lhes parece absolutamente surpreendente –meu tipo físico mestiço, mulato, causava invariáveis rebuliços de olhares, intensificava atenções, especialmente em cidades menores. Mas era difícil saber o quanto havia de racismo, de simples curiosidade ou de atração verdadeira naquilo.
Parece que outros muros ainda precisarão cair para que se mude nas retinas do mundo viciado em cinema a imagem negativa da Alemanha. Mas haverá nessa imagem algo que talvez contribua hoje para a compreensão do "traço característico" do povo alemão.
A impressão que se tem é de que a Alemanha vive em função de consertar os estragos causados pela sua desastrosa participação nas duas últimas grandes guerras. Há todo um esforço político, interno e externo, para se lidar com o assunto da forma mais honesta possível. Mas não é fácil.
Se, por um lado, é louvável que não se retire do trem o nome funesto de Dachau, que não se escondam as marcas do trauma, por outro, não é nada confortável encará-las. Nenhum alemão com quem conversei na Alemanha se sentia realmente à vontade para falar do assunto.
Começa a mudar agora, neste final de século, o processo de autopunição que o país parece ter adotado no pós-guerra: a criação de leis rígidas proibindo sua participação em missões militares internacionais, contra a xenofobia e o racismo, a favor da proteção em território alemão de asilados estrangeiros de todo tipo.
Depois da queda do Muro, a Alemanha enfrenta o dilema de ter que se reestruturar economicamente sem se esquecer do resto do mundo –dos investimentos sociais e culturais no Terceiro Mundo, incluindo a América Latina–, a quem ainda parece dever grandes retoques na sua imagem.
Precisa conciliar em seu território pequeno a presença dos milhares de turcos e outros imigrantes morenos que até pouco tempo tinham carta branca para se assentar entre os agora cerca de 90 milhões de alemães.
O fato é que a história recente parece ter acrescentado uma pesada carga de infelicidade à já essencialmente melancólica personalidade germânica, e dos chamados "povos do norte" –para usar palavras da definição um tanto idealizada, mas coerente, de Mme. de Staël sobre o traço característico do povo alemão.
"Sem dúvida as diversas circunstâncias da vida podem alterar esta disposição à melancolia, mas somente esta traz a marca do espírito nacional", dizia a intelectual francesa.
Melancolia era o que não faltava a envolver o silêncio por trás de um concerto da Orquestra Sinfônica da Alemanha, na Filarmônica de Berlim, em maio último, executando-se Stravinsky e Debussy. Era como se estivéssemos todos mortos, a música tocando, subindo, elevando-se sobre o silêncio absoluto. Morrer deve ser assim. Os alemães são meio mortos, pensei, meio imóveis.
Esperei meus 35 anos para assistir a um concerto de filarmônica. Fui fazê-lo na Alemanha, o berço da música clássica, por uma coincidência fortuita. Admirei o hábito (vai-se a concertos lá como se vai ao cinema aqui), o costume de um povo que se reúne para fazer e ouvir silêncio. Tive vontade de aplaudir de pé a maravilha da música e da meditação, a Alemanha inspirando a vontade de fazer e admirar a arte em todas as suas manifestações.
Outro exemplo: há pouco tempo, acompanhada de um grupo de três alemães na rodoviária do Tietê, em São Paulo, presenciei o encontro casual deles com uma estrangeira que descia de um ônibus vindo do Nordeste. Por circunstância cumprimentaram-se e descobriram que também a moça era alemã.
Mas a descoberta não gerou qualquer manifestação de efusividade ou afetividade. Trocaram rápidas palavras na sonoridade severa da bela língua alemã e pronto.
Despediram-se sem sorrisos –como refugiados de um destino triste encontrando-se na fatal estrada da fuga, como se tivessem vergonha de demonstrar que eram alemães ou, antes, como se não tivessem qualquer necessidade de revelar ou comemorar o fato.
Comparei imediatamente aquilo acontecendo entre brasileiros numa rodoviária alemã: risadas, gritos, beijos, abraços, um minicarnaval para celebrar a coincidência do encontro. A propósito dessa espontaneidade brasileira, uma amiga alemã comentou na ocasião da Copa do Mundo de futebol, sobre o jogo Brasil-Camarões, a que ela assistiu num parque de Munique:
"Havia muitos brasileiros, com bandeiras, assobiando e gritando como loucos; enquanto os alemães olhavam-nos de lado, rindo daquele patriotismo alegre, inocente."
Certamente um alemão, como qualquer outro povo nórdico, terá dificuldade para levar a sério esse "traço característico" do povo brasileiro. Não compreende como um país problemático e miserável pode despertar sentimento de patriotismo e ter uma gente tão alegre.
Afinal, nosso status lá fora é o de assassino de crianças, gerador de favelado, dono de uma das piores classes políticas do mundo, da pior educação, da mais injusta distribuição de renda.
Na teoria de Mme. de Staël, nossa alegria paradoxal se explica por sermos um povo do Hemisfério Sul (como todos os povos de origem greco-latina). Segundo ela, falta aos povos do sul espírito filosófico, falta-lhes experimentar "o sentimento doloroso da imperfeição de seu destino".
A poesia do sul (e consequentemente seu povo), diz Mme. de Staël, "ao contrário da do norte, longe de estar em consonância com a meditação, e de inspirar, por assim dizer, o que a reflexão deve experimentar –esta poesia voluptuosa quase que exclui inteiramente as idéias de certa ordem".
Estas "idéias de certa ordem" seriam característica da poesia filosófica dos povos do norte (os anglo-saxões, germânicos e nórdicos). "A poesia melancólica é a mais em consonância com a filosofia. A tristeza penetra muito mais no caráter e no destino do homem que qualquer outro estado de alma. (...) Os povos do norte se ocupam mais da dor que dos prazeres e sua imaginação nisto é mais fecunda".
"Os ingleses e os alemães retiram seus grandes efeitos dramáticos da descrição da infelicidade, que essas almas profundas e energéticas sentiram de forma tão dolorosa. (...) Enfim, o que em geral dá aos povos modernos do norte um espírito mais filosófico que aos habitantes do sul é a religião protestante, que quase todos esses povos adotaram. A Reforma é o período da história que mais eficazmente serviu ao aperfeiçoamento da espécie humana".
Segundo a teoria de Mme. de Staël, brasileiros, seríamos portanto espíritos medíocres (em comparação com os espíritos sublimes, inquietos, filosóficos) que se sentem em geral bastante satisfeitos com a vida como ela é: "eles complementam, por assim dizer, sua existência, suprindo o que ainda pode lhes faltar, com ilusões da vaidade."
Apaixonada por um germânico, o embaixador da Suécia na França, barão de Staël-Holstein, Mme. de Staël sacrificou sua nacionalidade por amor à Alemanha. Seu livro "Da Alemanha" foi considerado antifrancês por Napoleão, que mandou queimar toda a primeira edição.
Viveu exilada em vários países, inclusive Alemanha e Suíça. Chamada de "utopista do feminismo" pelo crítico Otto Maria Carpeaux, a grande dama dos salões literários franceses no século 19 dizia: "Os povos setentrionais, a julgar pelas tradições que deles nos restam e pelos costumes alemães, tiveram em todos os tempos um respeito pelas mulheres desconhecido dos povos do sul".
Curioso que ocorra hoje na Alemanha uma espécie de mini-escândalo provocado pelo casamento de homens alemães com estrangeiras de países do Terceiro Mundo (entre as quais tunisianas, polonesas e brasileiras) por pura conveniência, porque as alemãs se recusam a fazer o que eles desejam: lavar, passar, cozinhar.
Aprendi com meu pai, quando menina pobre em Recife, a desenvolver curiosidade pelo estrangeiro. Empenhado em arranjar empregos melhores, ele inventava currículos –marcava no item da qualificação profissional cursos que supostamente fizera um lugares como Filadélfia, Munique e Zurique. Mas nunca tinha saído de Recife, e mal completara o primário.
Estudava sozinho, consultando enciclopédias e mapas, inventando-se por necessidade uma biografia melhor. Até que um dia minha mãe, protestante aferrada à verdade, descobriu os falsos currículos e fez escândalo pela casa, denunciando os cursos fantasmas, nos lugares distantes, de nomes impronunciáveis.
Tocada pelo acontecimento, fui ver no mapa onde ficava Munique, Zurique. Devo ter prometido a mim mesma conhecer um dia aqueles lugares. Por acaso conheci a Alemanha, país surpreendente, comovente na sua história, cheio de cicatrizes expostas; assustador pela determinação, pela contundência da gente.
Mais de um alemão me disse achar que os alemães devem aprender com os brasileiros um pouco de humanidade, de espontaneidade. Quanto aos brasileiros, devíamos tomar aulas de cidadania e civilização com os alemães. A não ser que uma coisa anule a outra.
A não ser que sejam tão inconciliáveis quanto se pode sentir ao atravessar de trem a Alemanha. Pela janela do trem fui me perguntando se queremos aqueles campos verdejantes, aparados, agrícolas, cultivados, a beleza toda-acarpetada dos países europeus. (Talvez queiramos mato, queiramos fome).
Duvidei que queiramos aqueles castelos na montanha, aquele romantismo. (Nunca achei tão bonitos nossos barracões de zinco pendurados no morro, o realismo.) Na Alemanha há ferrovias e hidrovias. Pelos rios há navios transportando areia e pedra como se transportassem gente.
Não sei se podemos com aquelas paisagens de brinquedo, aqueles pequenos povoados, aquelas casinhas brancas de telhado inclinado e chaminés, aqueles trens correndo por trilhos que cortam campos floridos. Duvido que queiramos aqueles pinheiros, aqueles ciprestes sempre organizados. (Talvez queiramos selva, nossa Amazônia, queiramos fome de alegria, de vida espontânea).
A não ser, enfim, que fora do esforço diplomático –ou da atração mais particular e específica (amorosa ou sexual) entre dois indivíduos–, o interesse cultural ou a tolerância entre países, povos e raças misture menos boa vontade que hipocrisia. Que seja como quando nos visitam em casa aqueles amigos nem tão amigos assim. Dispomo-nos a recebê-los, tratamos todos muito bem. Mas quando saem, começa o falatório pelas costas.
A não ser que a incompatibilidade seja inerente. "A história nos mostra", já dizia o germânico Schopenhauer (1788-1860), "a vida das nações e nada encontra para narrar além de guerras e tumultos; os anos de paz aparecem apenas como breves pausas ocasionais e interlúdios. Da mesma forma, a vida do indivíduo é uma luta constante, e não simplesmente uma luta metafórica contra o desejo e o tédio, mas também uma luta real contra outras pessoas. Ele descobre adversários em todo lugar, vive em conflito constante e morre com a espada na mão."

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