São Paulo, domingo, 25 de setembro de 1994
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'Os Sertões' ganha tradução alemã

O clássico de Euclides da Cunha será lançado em Frankfurt

MERILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Quase um século depois de escrito, será publicado pela primeira vez na Alemanha o clássico "Os Sertões", de Euclides da Cunha (1866-1909). A tradução –lançamento da editora Suhrkamp para a Feira de Frankfurt– é de Berthold Zilly, 49, professor de literatura latino-americana na Universidade de Berlim.
Na edição alemã, o livro se chama "Krieg im Sertão" (Guerra no Sertão) e tem 783 páginas, incluindo um apêndice com glossário e notas.
Zilly morou dois anos no Brasil e é também tradutor de Adélia Prado, Mário e Oswald de Andrade, entre outros. Em entrevista à Folha por telefone, de Berlim, o tradutor disse que, entre o início do projeto e a conclusão da tradução, foram dez anos de trabalho.
Zilly conta que escolheu "Os Sertões" por entusiasmo com o livro, mas também por afinidade com a paisagem e o povo do sertão brasileiro.
(Marilene Felinto)

Folha - Quais as principais dificuldades que o sr. encontrou para traduzir "Os Sertões"?
Berthold Zilly - Eu poderia falar muitas coisas sobre isto. A principal dificuldade foi o vocabulário, que é muito variado e complicado, uma mistura de vocabulário científico, ultramoderno na época, interdisciplinar, com o vocabulário regional.
Tive também problemas com as metáforas euclidianas, que simplesmente não funcionam em alemão. Além disso, aquele português muito tradicional, lusitano quase, já que Euclides estudou os clássicos portugueses e dicionários para encontrar palavras raras e difíceis, mas bonitas também.
Há também o fato de ele citar muitos nomes da história universal, da antiguidade grega e romana, até da Índia. Ele passa por toda a história européia, de modo que é preciso conhecer bem essas culturas para entender todas as alusões.
Folha - O sr. sentiu necessidade de criar, em alemão, uma linguagem que se aproximasse do estilo de Euclides da Cunha?
Zilly - Sim, claro. Agora, meu grande problema é que não sou escritor. Então foi um desafio criar uma linguagem, em alemão, mais ou menos adequada ao estilo do original. A sintaxe de Euclides da Cunha é bastante complicada, de modo que, se já é difícil traduzir ou transferir, digamos, a sintaxe da língua portuguesa para o alemão, mais ainda a sintaxe muito individual e particular de Euclides.
É um estilo muito próprio dele, com a tendência de colocar as palavras ou a palavra decisiva no final do período. Então, durante, três, quatro, às vezes dez linhas você não sabe qual é o sujeito da frase. Fica tudo em suspenso, até que no final ele revela o segredo e a frase toda fica clara. A sintaxe alemã é totalmente diferente.
Folha - Por que o sr. escolheu "Os Sertões" para traduzir?
Zilly - Não foi uma proposta da editora nem de ninguém, foi uma idéia minha. Talvez, porque eu tenha uma espécie de afinidade, que Euclides tinha de maneira muito mais forte, com aquela paisagem áspera, inóspita, mas também, de alguma maneira, bonita, que é o sertão. Morei dois anos em Fortaleza e conheci bastante o sertão. Resolvi traduzir, de certa forma, por entusiasmo pela paisagem, pelo livro, pela figura de Euclides, e também para entender o livro. A melhor maneira de entender um livro difícil é traduzi-lo.
Folha -Que tipo de interesse um livro como "Os Sertões" pode ter para o leitor alemão?
Zilly - Acho que o livro interessa ao público alemão pela questão da alteridade, do interesse pelo outro, de como entender uma comunidade tão diversa do mundo chamado civilizado. É também um livro histórico, geográfico, que trata de maneira tão impressionante de problemas do século 19 mas que ainda existem. São os problemas da miséria do povo do Nordeste.
E não só do Nordeste. São problemas do chamado Terceiro Mundo. Há também todas as tentativas de resolver esses problemas, da invasão modernizadora, do esforço civilizador, que piorou e agravou os problemas e foi um processo muitas vezes brutal, que não levou em conta a cultura específica daquelas populações ditas atrasadas.
Isso também acontece hoje. Acho que o livro, apesar de certos aspectos típicos do século 19, de algumas colocações ideológicas como o racismo, por exemplo, expressa profunda compreensão dos problemas e grande empatia com o povo que procura resolver de maneira autônoma os seus problemas.

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