São Paulo, domingo, 25 de setembro de 1994
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Cinema Novo brasileiro influenciou alemães

LÚCIA NAGIB
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Tanto brasileiros quanto alemães costumam reagir com surpresa, quando se menciona este fato: o Cinema Novo brasileiro foi uma preciosa fonte do Novo Cinema Alemão. Parece realmente estranho que nosso cinema, hoje tão tímido, um dia tenha sido forte a ponto de alterar os rumos de uma cinematografia de Primeiro Mundo.
Acontece que o cinema alemão também não tem apenas uma história de glórias. Logo após a Segunda Guerra, enquanto os italianos avidamente tomavam a câmera para descobrir sua "verdadeira" realidade, até então camuflada pela ideologia fascista, e davam início ao neo-realismo cinematográfico, os alemães entravam numa hibernação de mais de dez anos sob uma onda morna de "Unterhaltungsfilme", ou filmes de puro entretenimento.
Quando os jovens alemães finalmente despertaram para tomar as rédeas do cinema, muita água tinha rolado em outros países. O famoso manifesto de Oberhausen, assinado por cineastas que ganhariam peso, como Alexander Kluge e Edgar Reitz, data de 1962, quatro anos depois de a expressão "nouvelle vague" ter se espalhado pelo mundo, celebrizada pelos jovens críticos dos }Cahiers du Cinéma que se tornavam cineastas –François Truffaut, Jean-Luc Godard, Jacques Rivette, Eric Rohmer e toda a turma.
E haviam se passado sete anos desde que Nelson Pereira dos Santos introduzira os princípios do neo-realismo no Brasil, com "Rio 40 Graus", tornando-se o precursor do Cinema Novo.
No entanto, a "nouvelle vague" francesa parece não ter provocado eco imediato entre essa primeira geração de jovens cineastas alemães. Em face do longo intervalo nazista que isolou o período do ouro do expressionismo cinematográfico num passado longínquo, Kluge, por exemplo, em lugar de apelar para cinematografias estrangeiras, preferiu beber na tradição filosófica e literária de seu país.
Mesmo Jean-Marie Straub, francês que fora assistente de Rivette nos anos 50 e se radicara na Alemanha nos 60, ao começar a rodar, em 1963, dirigiu-se decididamente a Brecht e a textos da literatura alemã para compor seu estilo singular. Apenas no começo dos anos 70, um pouco com Fassbinder e muito com Wim Wenders, é que Godard e os outros franceses iriam ver suas contribuições desabrocharem no cinema alemão.
Enquanto isso, os novos cinemas do Terceiro Mundo, impulsionados pelas esperanças socialistas e revolucionárias dos anos 60, ganhavam espaço na Europa. Já em 1963, o crítico Peter B. Schumann, divulgador na Alemanha do cinema latino-americano, organizou uma ampla retrospectiva de filmes brasileiros em Berlim, que a seguir foi apresentada também na televisão. As consequências dessa divulgação, que se ampliou por inúmeros festivais alemães e europeus, não tardaram a aparecer.
O mais flagrante dos casos é o de Werner Herzog que, com mais radicalidade que seus companheiros, rechaçou a artificialidade de estúdio, os atores profissionais e a paisagem urbana européia, excessivamente teorizada, pondo-se no encalço de "imagens nunca vistas", onde pretendia encontrar uma realidade mais "verdadeira".
Para esse autodidata, que desde 1962, na melhor tradição romântica alemã, fora rodar seus filmes em países distantes, utilizando-se de paisagens naturais e atores leigos, o cinema brasileiro constituiu um verdadeiro achado. O ineditismo que buscava tinha muito em comum com a novidade das imagens da seca e da miséria captadas pelos jovens diretores brasileiros, que estavam surpreendendo tanto o público brasileiro quanto o internacional.
Já no primeiro longa-metragem de Herzog, "Sinais de Vida" (1967), baseado numa novela do romântico Achim von Arnim e filmado na Grécia, são inegáveis as afinidades com o Nelson Pereira de "Vidas Secas" ou o Glauber de "Deus e o Diabo na Terra do Sol". Lá está a reprodução de um sol cruel, que acentua a brancura seca da paisagem, com a qual estabelece um duelo de titãs.
A seguir, Herzog iria deixar claras suas preferências pelo Cinema Novo, vindo filmar na selva amazônica seu "Aguirre, a Ira dos Deuses" (1972), quase como homenagem a Glauber Rocha (coincidência ou não, "A Ira de Deus" fora o primeiro título pensado para "Deus e o Diabo na Terra do Sol", de 1964).
E principalmente a Ruy Guerra, cujo filme "Os Deuses e os Mortos" (1970) contava então entre seus prediletos, o que valeu a Guerra inclusive um convite para interpretar um dos papéis centrais de "Aguirre".
A partir daí, as referências de Herzog ao cinema brasileiro se multiplicaram. O título original do filme sobre Kaspar Hauser, "Cada um por si e Deus contra todos" (1974) é uma frase que ouviu no filme "Macunaíma" (1969), de Joaquim Pedro de Andrade. Grande Othelo e José Lewgoy, atores consagrados do Cinema Novo, irão aparecer em "Fitzcarraldo" (1982).
E em "Cobra Verde" (1987), parcialmente rodado no Brasil, depois das sequências iniciais tipicamente glauberianas, em que o herói examina carcaças de gado sobre a terra rachada pela seca, reveremos de novo Lewgoy num dos papéis principais.
Tantas alusões não se reduzem, evidentemente, a meros recursos formais. Se Herzog é mesmo, como afirma Gilles Deleuze, "o mais metafísico dos autores de cinema", compreende-se que tenha se deixado fascinar pela dupla natureza dos personagens e paisagens de Glauber, cuja dimensão terrena da miséria é acrescida de uma outra, de grandeza heróica e messiânica.
Embora inteiramente alheio às preocupações políticas que compunham o nervo central do Cinema Novo, Herzog percebeu com aguda sensibilidade o significado transcendente da ópera de Verdi tocada no "Eldorado" de "Terra em Transe" (filme de Glauber de 1967), transformando-a no próprio assunto de "Fitzcarraldo" (1982), no qual o protagonista quer encenar a ópera na selva amazônica.
No que se refere aos demais diretores do Novo Cinema Alemão, embora menos românticos, não permaneceram imunes às imagens brasileiras. Fassbinder e Wenders –nos quais costumam-se destacar de preferência as contribuições francesas e americanas– também prestaram, cada um a seu modo, tributos ao Cinema Novo.
Fassbinder chamou um de seus filmes de "Rio das Mortes" (1970), em alusão a "Antônio das Mortes", título que recebeu na Alemanha "O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro" (1969), de glauber. Outro de seus filmes, "Die Niklashauser Fart" (1970), tem um personagem que imita Antônio das Mortes. Peer Raben, autor da maioria das trilhas musicais dos filmes de Fassbinder, contou-me que, junto com o diretor, assistiu entusiasmado a inúmeros filmes do Cinema Novo, no início dos anos 60. Conheceu Villa-Lobos e Guerra Peixe através das obras de Glauber, que lhe teriam fornecido farto material para suas próprias composições.
Wim Wenders, cineasta urbano e sem afinidades diretas com as imagens do meio rural brasileiro, tem um curta-metragem inicial, "Same Player Shoots again" (1968), composto apenas de uma sequência, repetida várias vezes com colorações diferentes, que nos mostra um homem carregando uma espingarda que cambaleia como se estivesse ferido, acompanhado de um fundo musical dramático. Não seria uma paródia da cena final de "Terra em Transe", em que o jornalista Paulo Martins ferido cambaleia longamente, com sua metralhadora, ao som de Villa Lobos?
Há ainda o caso de Volker Schloendorff, que, segundo ele mesmo afirma, teria tomado "Os Herdeiros" (1969), de Cacá Diegues, como uma das fontes de seu premiado "O Tambor" (1979).
Sem contar toda uma lista de alemães do período que vieram filmar no Brasil ou na América do Sul: Werner Schroeter, Peter Lilienthal, Peter Fleischmann –este, inclusive, trabalhou com o câmera Dib Lutfi. Mas é desnecessário estender-se sobre a produção destes últimos para constatar uma profunda e saudável transmissão de experiência entre brasileiros e alemães.

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