São Paulo, domingo, 25 de setembro de 1994
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Poemas do riso e do silêncio

ALBERTO ALEXANDRE MARTINS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Movidos por impulso de natureza radicalmente diversa, os dois primeiros livros da Coleção Matéria de Poesia refletem posturas distintas e significativas do fazer literário.
Zuca Sardan (ou Sardana), aliás o diplomata Carlos Felipe Saldanha (Rio, "mais ou menos em 1933"), participou da então célebre antologia de poetas marginais, }26 poetas hoje, organizada por Heloísa Buarque de Hollanda, em 1976.
Mas se o autor pegou carona na geração mimeógrafo, partilhando com ela o tom de deboche e anarquia da contracultura, é preciso lembrar que sua veia já vinha de longe. Desde os anos 50 o autor mantinha em casa uma pequena editora de folhetos e mais tarde, nos anos 60, participou em São Paulo do movimento Rex ao lado de Wesley Duke Lee e outros artistas.
"Osso do Coração" e "Ás de Colete", seus primeiros trabalhos com chancela de editora, confirma que Zuca é, dos companheiros da antologia, o mais fiel aos métodos precários de reprodução e circulação. Editado com todos os cuidados industriais, o livro reproduz a "assemblage" artesanal de Sardan. É que para ele a impressão borrada e avulsa, a tiragem de fundo de quintal, não são circunstâncias de momento, mas condição estrutural de sua sátira.
Mesclando desde o princípio o desenho, a caligrafia, a tipografia, colagens, garatujas e arcaicas "orthographyas", Sardan compõe folhas volantes um pouco no espírito de impressos medievais, comentários sardônicos sobre as peripécias do rei e da corte.
Mas se há algo de medieval, de jogral maluco no circo de Sardan, há também uma síntese disparada de elementos culturais arraigados em nossa formação. Assim não é por acaso que, a meio da leitura (e por legítima contaminação, suponho), o leitor se descobre ensaiando um familiar sotaque lusitano e é impressionante constatar como só então certas passagens adquirem sua locução precisa.
No baú de roupas de Sardan cabe todo o arsenal de disfarces literários que sobrem Colônia, Império e República. Daí a galeria de personagens ambivalentes, "entre a fralda e o fraque, a chupeta e o cavanhaque", como nota Chico Alvim num fragmento de apresentação: o Vice-Rei Charuto, professor Fumegas (velho conhecido em sua obra), o poeta Theobaldo Sylvano, o crítico Senhor Eustáquio Pimenta, Comendador Porcópio, etc.
Nessa terra em que –herança imutável da Colônia– academias são quase que invariavelmente a coroação de poderes que nada tem que ver com os da poesia, essa obra, capaz de transformar o nobre albatroz num gorducho avestruz, está destinada a revolver saudavelmente os fundilhos do meramente "literário" e colher desprevenida, com a roupa de baixo, a oratória de fraque e cartola.
Inteiramente outra é a postura de Maria Angela Alvim (1926-1959), cuja coletânea "Poemas" é ora publicada com supervisão de seu irmão, o poeta Francisco Alvim.
Maria Angela parece ter sido um caso de artista-submerso. Tão mergulhada no próprio trabalho que, de longe, o perfil de poucas linhas quase nada avisa do que há no bojo. Quando, por alguma circunstância, a obra finalmente vem à tona, o leitor depara, de uma vez, os sinais de sua originalidade e as marcas comuns do tempo.
Maria Angela estreou com "Superfície" em 1950. Drummond, num artigo de época (aqui incluído no posfácio), foi direto ao ponto. Além de chamar a atenção para a "natureza poética extremamente fina", aponta o que será uma constante na autora: "é bem o livro de quem se preocupou menos em situar-se no convívio literário e conquistar o interesse do público, do que em exprimir, por meio de notações límpidas, ao mesmo tempo fugitivas e exatas, a complexidade de certos estados de alma e de certas experiências vitais".
Já o primeiro poema desse livro - "Meus olhos são telas d'água,/ não ferem a perfeição." - dá a medida do duro duelo que irá se travar, dentro do eu, entre o essencial e o inapreensível. Tal conflito, que era dado de percepção espacial em "Superfície", revelando-se em poemas curtos, contidos, tornar-se-á temporal no livro seguinte, "A Barca do Tempo" (1950-1955), como a indicar que o impasse não se restringe à percepção imediata, mas estende-se ao ser no tempo.
Com articulação mais densa, a opção, ao gosto da época, é pelo soneto, talvez buscando na forma um indício de estabilidade, que o contínuo interrogar interior sempre destrói.
O volume traz ainda "Outros Poemas" - que não chegaram a ser revistos pela autora -, o conjunto largo e dolorido de "Poemas de Agosto" e a bela "Carta a um Cortador de Linho", que Lélia Coelho Frota considerou "uma das raras amostras conhecidas de prosa poética convincente em nossas letras".
Poesia "à procura antes do silêncio do que da palavra", como nota Alexandre Eulálio em belíssimo estudo também reproduzido no posfácio, mesmo em seus momentos malogrados há nesses textos uma tensão subjacente. Há sempre alguma coisa que pulsa, tentando abrir caminho. E, sem dúvida, o drummondiano inseto que cava, "sem achar escape". Em Maria Angela, ainda que não houvesse tempo para que o labirinto se desatasse, o leitor reconhece-o que não é pouco –o brilho de uma vocação que se queria cumprir a qualquer custo.
Última observação. Procuras tão distintas, avessas até, acabam encontrando um ponto de contato na obra de um terceiro poeta, de algum modo cúmplice desses dois lançamentos. Despertando para a literatura pelos poemas da irmã, Chico Alvim com ela compartilha a percepção cristalina e a matriz drummondiana, por ele levada ao extremo através de um lirismo esgarçado, de um eu em vias de desaparição. Ao mesmo tempo, "o conhecimento desabusado da vida contemporânea", segundo Roberto Schwarz, o aproxima, sobretudo nos últimos livros, do tom "sardânico" de cronista da tragicomédia nacional.
Tal disposição não é sinal de fraqueza. É que poesia, na realidade, não tem lugar certo. Move-se entre poderes, ela mesma um poder de outra espécie, pulsando sem cessar, filha de errância e do desejo.

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