São Paulo, domingo, 25 de setembro de 1994
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Como vencer o 'apartheid' social

LUIZ CARLOS BRESSER PEREIRA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Uma vez alcançada a estabilização através do Plano Real, o grande desafio que o Brasil enfrentará será o de retomar o desenvolvimento com distribuição de renda.
Para isto, a decisão fundamental é a da inserção internacional do país. Adotará o Brasil uma estratégia agressiva de conquista dos mercados internacionais, a partir de uma perspectiva baseada nos interesses nacionais, ou procurará voltar a se fechar, a se "voltar para o mercado interno", nos termos de um nacionalismo protecionista?
A candidatura Fernando Henrique opta pela primeira alternativa, afirmando que não apenas o desenvolvimento mas também a distribuição da renda só serão alcançáveis se o Brasil for capaz de se transformar em uma economia moderna, competitiva internacionalmente; a candidatura Lula opta pela segunda alternativa, a partir do pressuposto de que dessa forma seria possível enfrentar o "apartheid" social existente no país.
Há nesta segunda alternativa um óbvio equívoco: o protecionismo nacionalista e o corporativismo estatista não são nem a forma mais adequada de desenvolver o mercado interno, nem de combater o "apartheid" social. O mercado interno só se desenvolverá se o Brasil voltar a crescer.
Entre 1930 e 1960 o modelo de substituição de importações foi uma estratégia adequada de desenvolvimento. Há muito tempo, entretanto, deixou de sê-lo, transformando-se em mera forma através da qual grupos de empresários ineficientes e de burocratas aproveitadores privatizam o Estado, engajados em uma permanente busca de rendas extra-mercado competitivo ("rent seeking"). Por outro lado, a concentração de renda foi fruto desse modelo de desenvolvimento, de forma que não será voltando a ele que se conseguirá vencer o "apartheid" social.
Antes de mais nada, o Brasil precisa rever com urgência seu auto-diagnóstico –o de que seria um "small global trader" com vocação para negociar indistintamente com todos os países do mundo–, a partir das mudanças que ocorreram no cenário econômico mundial nas duas últimas décadas.
O Itamaraty tem resistido a essa revisão. Em um certo momento, quando Fernando Henrique Cardoso assumiu a direção do Ministério das Relações Exteriores, pareceu que a política externa brasileira finalmente mudaria. Mas, afinal, essa mudança não se concretizou, prevalecendo a visão essencialmente nacionalista do Brasil, que recusa a filiação do país a um grande bloco comercial. Segundo essa perspectiva, o Brasil teria uma vocação intrínseca para o comércio multilateral.
O Brasil precisa rever sua estratégia de inserção internacional não apenas porque o modelo de substituição de importações esgotou-se, e porque a abertura comercial demonstrou que o Brasil possui uma indústria internacionalmente competitiva, mas também porque a economia mundial sofreu nos últimos 20 anos um extraordinário processo de transformação.
Em síntese, o comércio internacional tornou-se mais aberto na medida em que os países subdesenvolvidos abriram suas economias unilateralmente e os países desenvolvidos o fizeram em função da Rodada do Uruguai. Mas, ao mesmo tempo, mais administrado, na medida não apenas que os blocos regionais estabeleciam preferências comerciais, mas também que os acordos formais e informais entre governos e o aumento das transações comerciais intra-empresas e intra-setores tornavam o comércio internacional crescentemente administrado.
É dentro desse quadro que o Brasil precisa tomar suas decisões. Abriu unilateralmente sua economia porque precisava também beneficiar-se da concorrência internacional, que obriga as empresas a aumentar sua produtividade e garante uma alocação mais racional de recursos. Mas agora precisa proteger sua economia de uma concorrência que, através do comércio administrado, acaba se tornando ainda perigosa para aqueles que dele estejam excluídos. De que forma proteger-se? Voltando ao protecionismo substituidor de importações? Paralisando sua abertura? Obviamente, não.
As formas de proteção hoje disponíveis para os países são positivas, não negativas. Primeiro, o Brasil precisa negociar sua admissão no bloco da América do Norte em conjunto com o Mercosul. A transformação do Mercosul em uma união aduaneira, com tarifa externa comum, foi um grande avanço. Mas não é suficiente.
O mundo está se dividindo em três grandes blocos: a União Européia, o Bloco Asiático (que é um bloco informal de produção) e o Bloco dos Estados Unidos, iniciado através do Nafta. Para o Brasil a alternativa é, ou inserir-se neste último bloco, ou fazer parte das nações excluídas dos grandes acordos preferenciais de comércio.
Participar de um bloco não significa, obviamente, renunciar à vocação multilateral do Brasil. Significa apenas fazer uma opção preferencial por um dos três blocos –aquele com o qual naturalmente temos maior afinidade, não apenas devido ao maior interesse dos Estados Unidos na América Latina, mas também porque esse país já é hoje mais aberto para as exportações brasileiras de manufaturados.
Em segundo lugar, precisa desenvolver políticas industrial e tecnológica coerentes, que garantam espaço para as exportações brasileiras. Inserir-se competitivamente no mercado internacional, manter a disciplina fiscal, reforçar pragmaticamente a abertura comercial, manter o programa de privatização, resguardar os direitos de propriedade de forma a garantir o investimento interno, e garantir condições para o investimento externo, privilegiar o funcionamento livre dos mercados –todas essas políticas não significam que o Estado deixe de ter um papel fundamental no desenvolvimento.
Esse papel não é apenas o de garantir a execução dos contratos e a ordem interna. Não é só o de promover a educação e a saúde. Não basta, também, investir na infra-estrutura. Além disso, será necessária uma política ativa de apoio à agricultura e aos setores estratégicos, para que possam ser bem sucedidos na sua concorrência internacional.
Mas até que ponto a inserção vitoriosa do Brasil na economia internacional é compatível com um processo de distribuição de renda? Os defensores da candidatura Lula pretendem que a inserção competitiva do Brasil na economia internacional será uma forma de manter o país subdesenvolvido e com a renda concentrada. Esta posição é obviamente insustentável.
Outros analistas, entretanto, que se pretendem neutros ou independentes, sugerem que a alternativa oferecida pelas eleições é entre o desenvolvimento moderno com concentração de renda, ou o não-desenvolvimento, o atraso, com distribuição. Ora, esta perspectiva também é insustentável.
Na verdade, só a retomada do desenvolvimento, para a qual a integração competitiva do Brasil na economia mundial é essencial, permitirá enfrentar de forma realista o problema fundamental do apartheid social. Há duas razões para o que estou afirmando.
Em primeiro lugar, porque, historicamente sabemos que nos seus melhores momentos a estratégia anterior de desenvolvimento –a substituição de importações– foi sempre concentradora de renda porque se baseava em grandes investimentos capital-intensivos, que privilegiavam o capital.
Foi concentradora porque baseava-se no "rent seeking" –na busca de vantagens extra-mercado competitivo–, na medida em que implicava em subsídios de toda ordem aos empresários locais, em proteção à indústria local contra os consumidores, e em um excessivo poder para a tecnoburocracia. Os críticos dos modelos de substituição de importações muitas vezes pretendiam que a concentração de renda nele presente derivava da política salarial. Tal crença superestima o poder de tal política.
Em segundo lugar, porque, depois de um certo nível de renda por habitante, o desenvolvimento tende a ser acompanhado de distribuição de renda, na medida em que esta se torna funcional ao próprio desenvolvimento. A tese de que primeiro é preciso concentrar, aproveitando-se da maior propensão marginal a poupar dos mais ricos, para em seguida distribuir, só é válida nos primeiros estágios de desenvolvimento, quando a economia não realizou ainda sua acumulação primitiva –ou seja, quando ainda não se tornou dominantemente capitalista, nem alcançou uma taxa de poupança sobre o PIB em torno de 20%. A partir, entretanto, do momento em que uma economia completa sua acumulação original –o que geralmente coincide com uma renda por habitante de US$ 2 mil– o desenvolvimento tende a ser acompanhado por distribuição de renda.
Mas isto não significa que o mercado garanta automaticamente uma distribuição de renda mais igual. O mercado sozinho não garante nem o desenvolvimento nem a distribuição de renda. Ambos são garantidos por uma equilibrada coordenação da economia pelo mercado e pelo Estado. O apartheid social tem que ser combatido no Brasil não apenas por uma política de desenvolvimento, mas também por uma política deliberada de distribuição de renda.
No processo de definição de uma nova estratégia de desenvolvimento e de distribuição de renda para o Brasil é fundamental a recusa a qualquer tipo de abordagem dogmática. Ao invés, é preciso adotar uma perspectiva pragmática, na qual o desenvolvimento do mercado interno e a distribuição de renda são objetivos essenciais que só poderão ser alcançadas se o Brasil for capaz de, agressiva e firmemente, conquistar um espaço no cenário econômico mundial, e, ao mesmo tempo, lograr realizar uma política social e de distribuição de renda que lhe garantam o efetivo acesso à modernidade.

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